Surpresa nos convocados: ainda não é desta que passamos à dissertação quimbertiana.
Há não muito tempo, sussurrava-se entre os cacifos do balneário cadernético que realmente a bola portuguesa não pára de nos demonstrar que todas as ocorrências, por mais insignificantes que pareçam, estão relacionadas de forma decisiva para congeminar a essência desta nossa fascinante realidade. O tal efeito mariposa, que em futebolês se formularia no teorema “quando um profissional guineense bate as asas na cara dum apanha bolas na Choupana, um ex-treinador do Casa Pia ganha o campeonato da Costa Rica”, revela-se uma vez mais e com arrepiante actualidade. Na mesma semana em que resolvíamos abordar, ainda que superficialmente, o africanismo futebolístico, eis que salta para a ribalta justamente o mentor espiritual de uma das experiências melhor conseguidas nesse quadrante etnico-futebolístico. Falamos da feroz dupla Clint e Lewis que, de blaugrana em Felgueiras, e amparados por Baroti e os Lima Pereira, trouxeram para a montra da redondinha viriata a hipnótica cadência do futebol crioulo e deram ao condado do saco azul as últimas alegrias antes da descida de divisão do ano seguinte. O artífice desse “apogeu e queda” é o tal estratega hoje em dia tão em voga: Jorge Jesus, flamante empresário multifacetado, o Rinus Michel da Medideira que fez a baía seixalense parecer os diques que protegiam estoicamente o De Meer de Amsterdão, tal era a torrência do seu total voetbal nesses longínquos começos da década de 90, no começo da sua carreira. Honra lhe seja feita, não só trouxe à Atalaia a festa do centro-avante recorrendo a homens que anos antes se degladiavam pelo melhor lugar no banco de Alvalade, Rui Maside e Ali Hassan, como moldou o trinco Sessay e o infatigável lateral destro Tó Sá. Dois jogadores que viriam a elevar outra mística verde e branca, a de um Setúbal a ferro, fogo e mialgia, histórica geração de futebol extremo ainda hoje recordada pelos últimos pescadores de salmonete à linha como uma lenda somente com paralelo noutras latitudes futebolísticas (tema de elevada profundidade técnico-táctica a esmiuçar atempadamente). Adiante.
Esta emergência de Jesus que agora povoa o meio-campo dos jornais desportivos e que nos relaciona com o candomblé futebolístico praticado pelos tobaguenhos em Felgueiras, não é porém a primeira referência a Jesus no já vasto palmarés da Caderneta da Bola. Não querendo entrar nas lateralizações sumamente cristãs ao colectivo dos Atletas de Cristo feitas ao longo deste lustro e meio, outro colectivo entrou pela mão de outro Jesus aqui na nossa publicação corria o longínquo ano da graça de 2003. Concretamente, no dia 15 de Outubro, o senhor entrou nas nossas orações enquanto dissertávamos sobre o mítico Desportivo de Chaves. Como já terão percebido os mais perspicazes, trata-se de Jesus, sim, mas de um outro, um que espalhou a mensagem na ala direita por essa Europa fora e que não é da Galileia mas sim de Aragão: o cigano Jesus Seba, insígnia indomável de outro povo renegado que soube espalhar a mensagem do cruzamento contra toda a espécie de filisteu esquerdino.
Nascido 14 dias antes da revolução dos cravos, compensava o 1,68 metro com uma explosão e pantomina verdadeiramente flamencas. Ironicamente, o seu futebol soube criar as raízes que os preceitos étnicos sempre renegaram, e acabou por demonstrar qualidade suficiente para ser internacional esperança pelo país vizinho, enquanto maravilhava a sua Zaragoza natal. Com uma lesão gravíssima pelo meio, a sua problemática maioridade futebolística forçou-a a uma tão inusual como exitosa diáspora, naquela que era das primeiras incursões de futebol latino na Velha Albion. Aconteceu um daqueles fenómenos extraordinariamente raros que diferenciam o futebol de outras artes circenses: chegado com dois comparsas de diáspora a Wigan, essa terra incerta disputada pelos condados de Manchester e Lancashire, perigosamente próxima da letárgica Bolton, espalhou-se pela cidade a chegada do Messias e os Lactics vibraram com uma reinado de culto, de futebol fluído como sangria e sacramental como a guitarra de Paco de Lucía.
Juntamente com Isidro “Izzy” Díaz, que mais tarde também passaria pelo Barcelona do Marão, e com Robert “Bob” Martínez, carismático centro-campista eleito em 2005 como o melhor jogador de sempre da história do clube e hoje promovido a maneiger dos Lactics , formou um lendário tandem conhecido por Los Three Amigos, praticando um culto futebolístico que levou a equipa da quase descida à Conference division a um apostólico apuramento para a Second Division em apenas três anos. Um glória que Jesus não chegou a atingir: impelido por uma crónica dificuldade em dominar o idioma de Harry Redknapp nas profundezas da Albion e por uma tendência ao nomadismo quase genética, o torpedo caló voltou a Zaragoza e o mantra “Jesus is a Wiganer” não mais se voltou a ouvir em Springfield Park. Um ano depois, rumou ao Belenenses de Marinho Peres, e o resto é história, grande parte dela transmontana numa saga já aqui destrinçada. A verdade é que este sobredotado do cruzamento em arco elevou, como saltimbanco errante pelos relvados sem fronteiras, o trato do esférico a um estatuto de arte efémera e acrescentou o seu nome à não muito vasta lista de sacerdotes da mitologia futebolística europeia.
Hoje, o cigano Seba afundou por fim raízes na terra e escolheu-o bem perto de casa, numa aldeia que leva o nome do lugar mítico do povo mercador, esse lugar irreal que existe de e para o nomadismo da compra. Jesus tem hoje o seu templo em Andorra – não a autêntica, checkpoint comercial encravado nos pirinéus, mas uma de imitação, muito mais barata e em território espanhol. Perante três mil espectadores, volta a fazer do campo o seu tablado e quando se apagam as luzes aqui no balneário da Caderneta, é o som da sua boleria que recordamos.
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