Caderneta da Bola
Historiografia, narrativas e estatísticas de figuras e episódios lendários da bola, essa arte geométrica. Envia-nos mail para a.caderneta.da.bola@gmail.com .
quarta-feira, fevereiro 20, 2013
Saigão
Abril, 2009
Saigão... foda-se, ainda só estou em Saigão. Cada vez que penso que terei que sair algum dia e voltar para a selva. Quando voltei a casa pela primeira vez depois da minha primeira missão, aqueles dois anos em Timor, foi pior. Acordava à noite e não havia nada. Quando estava fora só queria lá estar, mas quando lá estava só pensava em voltar para a selva. Já cá estou há uma semana... à espera de uma missão... da missão. A amolecer. Cada minuto que aqui estou, enfraqueço, e a cada minuto que passa eles fortalecem-se, emboscados nos arbustos à espera do treino, à espera que ele os leve à glória. Cada vez que olho em volta, as paredes parecem mais estreitas, o quarto mais escuro.
A qualquer momento entrarão no quarto e farão oficial o que já sei há demasiado tempo. Queria uma missão, outra missão, quem sabe a última, e era exactamente isso que teria. Semanas, meses, quem sabe anos, no rasto, na sombra dele e do seu mito. Os campos, os relvados mortos, os telhados de zinco quebrado dos balneários, as notas e mais notas traduzidas destes caracteres malditos que invadiam até os letreiros dos meus próprios pesadelos. E as fotos do seu sorriso e do bigode, do seu chapéu de pala e do olhar próximo e triunfal, desse Ícaro luso da bola indochinesa, destinado a queimar as asas no final da época.
Não foi por acaso que me escolheram para isto. Algures alguém em Portugal não percebeu como é que um homem passa de fracassado em Paços de Ferreira a imperador do esférico vietnamita, idolatrado nas profundezas do Mekong e promovido a líder máximo do país futebolístico. Tudo isto em apenas oito anos. Algures alguém em Portugal não percebeu, como não percebe muitas outras coisas, mas não teve coragem de vir até aqui, à beira dos pântanos, ao prenúncio da monção eterna, buscá-lo, vê-lo e liquidar o mito.
Precisavam de alguém com estofo, alguém tarimbado no sulcar das águas do Mar da China. Há anos que conheço o ultramar e desde que deixei os jovens da Luz que cresço nas suas desgraças. De Timor para encontrar Febras, Tigre na Malásia e guiar o navio do Sabá até à chamada da Madeira. Era a equipa B do Marítimo de Veracruz, essa equipa de Bonamigo nos Barreiros, mas voltar a casa não era voltar a casa porque já não havia casa e a haver não seria certamente nas encostas sobre o Funchal.
Pouco tempo até voltar para longe. Hong Kong, novamente aquele mar pardo e a vertigem das montanhas de aço, encadeados pelo reflexo do sol nas vidraças dos arranha-céus a caminho do treino, e o grupo do Porto no South China. O Oliveira, o Correia e o Coelho de Gaia, com o Detinho a fazer daquele micro-Macau um Matosinhos. E depois mais turbulências, desenganos, tumultos entre expatriados e o refúgio em casa. Lousada, até perceber que Lousada custa a ser casa até para quem nunca saíu de lá. E novamente não dormir, não treinar em condições, não ver a substituição a tempo, não ver o tempo de ir embora. A memória de Hong-Kong torna-se dócil, aprazível. Momento de voltar para o mar, para o Detinho, de comungar a inadaptação lusitana com o germano-brasileiro Tales e, mais tarde, de receber o grande Nuno Cavaleiro nessa dianteira, gerir a faísca com o super-herói menor, sambista de shaolin Max Gol.
Até aqui. Até Saigão. Voltar a ser José Luís, em missão pelo Coronel Calisto, feixe de êxito e temor na escuridão deste futebol das antípodas. Dentro de pouco, muito pouco, alguém entrará pela porta e me dirá que está confirmado: director técnico do Dong Tam Long An. “Dong Tam Long An, como o Boavistão”, dizia o adjunto vietnamita do director. “Boavistão”, assim tal e qual, com aquele nasal claramente treinado pelo senhor Calisto. “O senhor Calisto agora vai guiar o nosso país à aurora da Tiger Cup, senhor José Luís”. O senhor Calisto e o filho do senhor Calisto, tentáculo imberbe dessa particular mitomania, o Jorge Mendes de Ho-Chi-Minh, como tantos outros que conheci. E o senhor José Luís vem para fazer esquecer o senhor Calisto porque é o mais parecido com o senhor Calisto que conseguimos arranjar. E o senhor José Luís, penso para mim, deve explicar lá aos senhores na sede da Liga em Portugal o que é que o senhor Calisto faz no outro lado do mundo que nunca fez à beira Douro. E o senhor José Luís vai ter que aguentar o terror até lhe chamarem para outra missão, talvez voltar para Lousada, talvez continuar a navegar.
Sei que agora que lidera o país desde o covil selvagem da federação local, chegará o momento em que nos enfrentemos. “Oito anos, Zé, vi coisas nestes campos complicadas, difíceis, impossíveis de descrever. Oito anos. O horror, Zé, ou adoptas o horror, Zé, e a moral. Ou adoptas o horror e a moral, Zé, ou serão para sempre os teus grandes inimigos”. Oiço a voz dele dentro do quarto com a certeza que passarei por algo que já vivi. “Tudo o que fiz e que me trouxe aqui, finalmente prestes a algo, fi-lo contra a mentira, quando percebi que só conseguiria os títulos com estes homens que nunca me julgariam. Jogávamos e jogávamos, desde a disciplina e a entrega absoluta. Tivesse tido cinco, três, um homem destes que fosse em Paços ou na Académica, e verias o nunca visto. Agora és tu. Podes destruir o meu legado, matar a lenda, superar-me e humilhar-me, mas não me podes julgar”. Não o oiço agora mas sei o que ele dirá. Enquanto espero enfraqueço. Enquanto espero ele fortalece-os, na emboscada.
segunda-feira, novembro 14, 2011
Zito, ou o presença de todo o futebol na ausência de um canhoto - Parte II
Adiante. Os blues deste xaman, Rei Lagarto da linha lateral e Backdoor Man de meio da tabela, começaram no exacto dia em que morreu Jim Morrison. Esquivo e lânguido, entre a hibernação e a explosão animal, Zito nasce a 3 de Julho de 1971 na província angolana de Malanje, berço das palancas negras que mais tarde representaria com tanta galhardia como agridoçura. Após anos de forja de estilo e substância entre várias latitudes, o baptismo de Helmer no escalão sénior e em competiçoes oficiais indicia o que viria a ser, não só de si, mas dos futuros paradigmas do futebol interno. Com 19 anos, talento e souplesse em bruto, Helmer começaria na Medideira a transfiguraçao em Zito ao lado de nomes cimeiros como o matemático lateral direito Tó Sá, futuro indiscutível em Setúbal e Coimbra, o incrível almadense Jorge Paixão, ou o brasileiro Helinho, em anos idos um dos preferidos do São Luís farense. Acrescente-se a estes, como não podia deixar de ser, o seu primeiro mentor na ala esquerda do ataque, Jorge Silva, totalista ou quase nesse grande projecto futebolístico liderado pelo já aqui mencionado Jorge Jesus, o Rinus Michels da Medideira, laboratório onde patenteou a defesa à zona e a grandiloquência dos campeões.
Sénior no escalão mas júnior na relação com a labor diária de um futebolista emergente, a saída de Zito na temporada seguinte, em 1991, de uma das equipas sensação numa 2ªB dominada pelo Olhanense de Edinho e Pedro Estrela, para um despromovido dessa mesma divisão, causou alguma surpresa. Essa surpresa e a frieza desses dados não fazem justiça à crua realidade: Zito incendiava a baía e assinava pelo Seixal, na primeira vez que jogaria de azul e grená na sua carreira. Do outro lado, de frente para uma Medideira que aplaudia um dos melhores momentos futebolísticos da história do Amora, Zito tentava colmatar a orfandade, entre outros, de Paulo Vida e o sueco Sunesson, desertores no vendaval da despromoção, e manter a salvo o barco seixalense na maré baixa da 3ª divisao. O sexto lugar no final de 1992 foi um pequeno passo para um colectivo que aspirava voltar ao escalão superior mas salto gigantesco para um esquerdino em ascensão, cujo potencial cativaria o Malveira, promovidos, esses sim, à zona centro da 2ªB. Dando sentido à expressão do passo atrás para poder dar dois adiante, Zito continuaria as boas exibições num Atlético da Malveira insuficiente, com pouco mais de metade dos pontos do omnipotente líder Académico de Viseu, de Zé de Angola e Besirovic.
Com 21 anos e um nome recorrente nos mentideros das divisões inferiores, o trabalho no oeste seduz os olheiros da cidade-berço e serve a Zito de trampolim para o Dom Afonso Henriques, chegando onde apenas 2 anos antes, despojo de um Amora ganhador, dificilmente teria imaginado. No Minho entra pela mão de outro líder cuja vitrine viria anos mais tarde a albergar o surpreendente palmarés de, entre outros, três Girabolas seguidos ou o record de maior número de Supertaças Angolanas da história da competição. Bernardino Pedroto, homem que viria a marcar de forma inquestionável o desporto do seu país, dava então a Zito a oportunidade de debutar na divisão maior do futebol português, e ainda para mais num elenco repleto de celebridades sujeitos erraticamente à glosa cadernética. A dupla zairense, o clã tunisino, o incombustível Dane e o combustível Zlatko Zahovic, o ardente Platini de Ljubliana, ou a futura estrela patrícia no mundial sub-20 qatarí Agostinho, epifenómeno ibérico já aqui referido e nessa época em plena explosão. Seria justamente o brilhantismo de Agostinho na ala esquerda do ataque vimaranense o principal obstáculo à emergência de Zito. Impedido pela acesa competição de jogar uma única vez sequer a titular e fechado no loop da substituição a vinte minutos dos noventa, acabaria por ser com uma mágoa resignada e uma réstia de esperança que aceitaria a inclusão na transferência do avançado mineiro Gilmar para os vimaranenses, rumando por empréstimo ao recém-ascendido Desportivo de Chaves.
Apesar da época instável, própria de um colectivo em adaptação a um escalão exigente, o rendimento de Zito sobreviveu à intempérie trasmontana e à substituição do artífice da subida António Jesus por Vítor Urbano e coalhou num excelente entendimento com um avançado que anos antes via como um rival imbatível nesse fortíssimo Olhanense da subida que vulgarisou o seu Amora: o brasileiro Edinho. Grandes momentos como o seu primeiro golo com o Barcelona do Marão, numa tarde inesperadamente solarenga frente ao Uniao de Leiria ou as duas vitórias frente ao Boavistão de Manuel José, a primeira das quais por 4 bolas a 1 no Bessa, com 20 minutos de absoluto terror e demolição dos axadrezados.
No final dessa temporada, aspiraria legitimamente regressar à casa mãe e triunfar finalmente no clube que o resgatara das profundezas das competições inferiores mas encontraria uma singular circunstância que se viria a repetir época após época. Um dia da marmota mas com uma palanca negra encravada em 24 horas que se repetem perenemente, começando com a esperança desmedida e acabando com o guia de marcha. “Temos este e aquele, Helmer”, e o Zito embala a trouxa e marcha. Primeiro desafogando uma frente de ataque branca que incluía agora Capucho ou Vorkapik, rumo a um Paços de Ferreira de Segunda de Honra onde reencontraria António Jesús e César, defesa igualmente proscrito pelas hostes afonsinas, numa equipa com talento em homens como Telmo Pinto, o histórico Yulian ou o portentoso Dinda, centrocampista infatigável na tarefa de carregar o piano desde o fundo do poço.
Nesse ano ficou às portas da subida mas novamente titular, viveu o mesmo momento do ano anterior e acabou por rumar novamente a sul, desta feita com a particularidade de ser chamado pelo treinador que, dois anos antes, achara que a lapidação do diamante implica regularidade e que essa a encontraria em Chaves. Falamos do Belenenses do mago Quinito, do regresso de Helmer ao escalão maior, de um jogador a atingir a maioridade futebolística e a encarnar a sina do talento futebolístico português: crescer no fio da navalha e a evoluir contra o jugo implacável da casuística do mercado e de uma estrutura para quem o talento e o futebol dandy é uma metástase, tão disseminada como nociva.
Era um Belenenses à imagem do seu mestre, impregne de carisma na defesa, fantasia e criatividade no meio - nao estivéssemos a falar nós de uma bicefalia Rogério e Rui Esteves - e de veneno no ataque, com o goleador do Atlas, Youssef Fertout, e Pedro Miguel, que já há alguns anos foi alvo de uma monografia neste vosso bloco de notas. Infelizmente, também o era de escassos resultados, não obstante a boa impressão novamente deixada por Zito, condimentada com alguns golos como os que marcou ao FC Porto e ao Sporting.
O regresso a Guimarães para o derradeiro déjà-vu no final dessa época teria como protagonista Jaime Pacheco. O férreo treinador, hoje apóstolo da marcação ao homem na república popular chinesa, avesso ao carácter do desiquilibrador, colocou-no no mercado e à margem das opções do grupo. Zito via este prêambulo de alguns meses em plena maturidade e conhecido cada vez mais como Prince, outro pequeno génio de reconhecimento ambíguo, alcunha propalada por amigos como Evaldo, lateral guineense e outro desconsiderado de Guimarães. O calvário acabou nessa despedida já narrada, rumo a Chaves num mercado de inferno, que via novamente o palanca como moeda de troca de um ex-diamante negro de Robson, o leopardo Etienne N’Tsunda. Essa atribulado primeiro semestre de 1998 incluíu ainda uma presença numa Copa de Naçoes Africanas de má memória para os angolanos. Numa selecção liderada pelo intercontinental Professor Manuel Gonçalves Gomes, Neca, e numa equipa suportada por figuras como Fabrice Akwá ou Quinzinho, Zito viu o seu país ser trucidado na bola pela Costa do Marfim do venenoso Ibrahima Bakayoko e pelos finalistas vencidos África do Sul, onde despontava um sobrevivente do Soweto que viria mais tarde a ser também sobrevivente da noite de Vigo, um jovem Benny McCarthy.
Em Chaves, no mês de Março, fez os seus três jogos da época numa equipa estelar cujos intérpretes justificaram já um estudo aprofundado (recuperável algures nos arquivos de dois mil e três). O que provavelmente não imaginaria seria que esses seriam os seus últimos três jogos no escalão maior do futebol português, despedindo-se frente ao Salgueiros de Dito. Refira-se que em Chaves trabalharia também com outro treinador campeão em potência, Álvaro Magalhães, um domador de banco sanguíneo e irregular que ganharia a Segunda de Honra em Barcelos no ano seguinte e o Girabola 12 anos depois.
O ano seguinte seria novamente no Belenenses, para onde seguiria com Matute, companheiro seu na dianteira transmontana, e onde seria treinado novamente por dois campeões, o histórico Vítor Oliveira - por três vezes ganhador da Segunda de Honra - e, antes dele, Manuel Cajuda - que nunca ganhou nenhum título mas que adquire esse estatuto ao referir-se a si próprio como se tivesse ganho vários.
A excelente prestação no Belenenses valeria ao clube a promoção à divisão maior mas Zito, quiçá resignado ao apelo do norte ou talvez a não nadar contra correntes adversas, seguiria para a estabilidade do interessante projecto Espinho. O treinador, diga-se, era Carvalhal, um recém-promovido a treinador cujos dotes de leitura técnico-táctica lhe assegurariam a glória não só em Matosinhos, quando levou o Leixões ao título da 2ªB e à final da taça de Portugal, como em Setúbal, com a vitória na Taça da Liga.
Depois de Espinho, uma espiral descendente em direcção ao Paredes e, antes do fim, um último périplo frustrado no Operário, liderado no banco pelo ericeirense mas histórico do futebol insular Filipe Moreira e no relvado pelo seu conterrâneo de Malanje, o mago Osvaldo Pinto, internacional A pela selecção portuguesa na Skydome Cup canadiana sob o pseudónimo de Vado. Depois dos Açores, dar à costa em Gaia e acabar a carreira no Canelas aos trinta anos, marcando o seu último golo como profissional ao FC Porto, derrotados na outra margem do Douro com Bruno Vale na baliza e figuras da dimensão de um Ricardo Costa ou de um Hugo Almeida.
Aqui jaz, então, nas entranhas dos cursos de treinador de segundo nível e do anonimato quotidiano, levado cedo demais desta vida da bola incapaz de traduzir em número a sua poesia, apesar de moldado por inúmeros campeões. Estampado nas costas do equipamento, já seja o azul belenense, branco vimaranense ou o beige anónimo da empresa de segurança comercial onde agora encerra as memórias de uma vida de relvados, Zito leva o genoma do homo luso futebolensis. Éfige de toda uma cultura, síntese de um futuro que já vimos.
sábado, junho 25, 2011
Zito, ou o presença de todo o futebol na ausência de um canhoto - Parte I
Vira à esquerda, começa a procurar lugar para estacionar, hoje é melhor não ir justamente até à porta do Dom Afonso Henriques. Recorda quando saltou para o campo em Alvalade, a multidão leonina galvanizada pela entrada de Juskowiack e o terror na cara de Taoufik, os gritos do Matias, o pedido de substituição após aquele golo, o terror os dentes cerrados de esperança, aquilo não era o Malveira, era o Vitória em Alvalade e um nome de guerra. E agora a guerra perdida, estacionar o carro e subir para o gabinete, estão à espera para fechar o acordo, à espera lá em cima, em Chaves, no Zaire.
quarta-feira, junho 22, 2011
Interlúdio
quinta-feira, junho 09, 2011
Ziad: O voo rasante da Águia de Cartago rumo ao golo e à liberdade.
Retomar o fio à meada tem destas coisas. Os temas sucedem-se encadeados e cada treino que começa ao fim da tarde no pelado mal iluminado do grupo desportivo A Caderneta da Bola, começa instintivamente no ponto onde o treino anterior acabou. Um círculo sem fim nem princípio, no fundo, um maravilhoso carrossel a fazer lembrar o entrosamento de Yulian, Tulipa e Jaime Pacheco no meio campo de mogno da Mata Real a princípios dos 90, décadas antes do futebol contraplacado de Vitória.
O adepto atento, o do transistor e da sueca à sombra à espera do treino, já terá percebido que o que subjaz a este movimento perpétuo é a busca do futebol total na riqueza dos detalhes. Também não surpreende que essa deriva, esse vendaval ofensivo, nos motive a buscá-lo, pelo menos por agora, na origem, no começo de tudo, no berço. E é na cidade berço, no momento em que voltamos à interrompida saga vimaranense, que encontramos um dos mais pulcros exemplos do futebolista total. E o futebolista total é em primeiro lugar um homem novo que, neste caso, não vem da mata mas sim do deserto e novamente da Tunísia, que torna a ser fim e princípio de tudo. Filho do lendário Abdelmajid Tlemçani, puro sangue árabe que carimbou 54 tentos no final dos anos 50 tingido do vermelho e amarelo do Espérance de Tunis, falamos de outra estrela que viu em Guimarães uma parte importante do seu interregno de estrelato num dos principais clubes africanos. Ziad Tlemçani.
Chegados a este ponto, fácil seria discorrer detalhadamente sobre a sua trajectória em Guimarães, estada que o consagrou como um dos maiores avançados a pisar o território português desde que no território português se começou a pontapear esféricos de couro em direcção a balizas. Tão fácil, aliás, como a goleada infligida pelos vimaranenses ao promissor Famalicão de Medane, Menade (operaçao no defeso com o propósito expresso de confundir comentadores) e Barnjak, orientados por Josip Skoblar, o Neptuno de Prevlaka e timoneiro de um histórico e premiado Hajduk Split. Tão fácil como o golo disparado de primeira por Tlemçani nesse mesmo jogo.
45 golos em mais de 100 jogos ao longo de 5 épocas, vitórias europeias incluídas como aquela noite lendária contra a Real Sociedad, uma CAN jogada em casa na qual a sua selecção ficou pelo caminho na fase de grupos, em certame ganho pelo dream team nigeriano. Uma relação tumultuosa com alguns dos seus treinadores (que o diga Marinho Peres), outra de amor indestrutível com os Insane Boys (delicioso pleonasmo tratando-se de adeptos vitorianos) e outra, paralela, de elevado teor paternal na fronteira do freudiano com o seu presidente, quiçá reconhecendo em Dom Pimenta Machado a presença de um pai Abdelmajid que nunca chegou a ser suficientemente presente aos pés do Gerês.
Depois de Guimarães, quando todos os indícios de análise futebolística apontavam para uma carreira em declínio, Ziad decidiu, como no primeiro dia, que ainda havia história por escrever e embarcou na aventura de ser o primeiro futebolista africano a jogar no Japão. O destino foi uma Kobe na ressaca de um dos mais violentos terramotos que a história da humanidade conheceu e a missão a de reerguer os ânimos destroçados de uma cidade em profunda depressão. Na segunda divisão japonesa, apresentou-se às ordens de Stuart Baxter, ex escudeiro e oficioso conselheiro das noites de Malcolm Allison nas docas setubalenses com os fantasmas da Torralta ao fundo, ruínas de outros terramotos, e partilhou, no primeiro ano, o estrelato internacional no plantel com o suiço Thomas Bickel. A sua segunda temporada no país do sol nascente é a da confirmaçao que mais que o primeiro futebolista africano a subir à relva nipónica, Ziad erigiu-se um dos principais artífices da regeneração emocional da massa adepta do Vissel, contribuindo com 25 golos para a subida à J-League e deleitando o público com momentos de magia ancestral em parceria com Michael Laudrup. A terceira temporada é a da estabilidade ao mais alto nível e a do arigato profundo que só os samurais de cabeça alta pelas batalhas ganhas podem ostentar, antes do regresso a Tunes, onde lhe esperava o périplo pela liberdade.
É com o fim da carreira futebolística, com a distância, que a figura de Ziad adquire uma clareza tão imponente quanto perturbadora. Ao contrário do seu compatriota e antigo companheiro na cidade-berço Taoufik, que optou por abrir um conceituado ginásio para a burguesia magrebina e expatriados ávidos de exercício e volumosas carteiras - o esplendoroso California Gym, que a Caderneta da Bola recomenda para quem busque em Tunes uma sessao de fitness com classe - Ziad enveredou por uma nova carreira sempre em crescendo. Não contente com posições técnicas e directivas no Espérance, com a aprendizagem técnico-táctica ao lado de nomes como Sacchi ou Arsène Wenger e mesmo com alguns biscates no trading de camaradas da bola como o lateral Trabelsi, o mito preferiu navegar nos ventos da modernidade e da liberdade.
Prova disso é a pugna pela liberdade de expressão com uma polémica e transgressora candidatura à Federaçao de Futebol do país, bloqueada pelo hoje tirano caído em desgraça Ben Ali e a criação de aquilo que alguns designam já como o Sand Valley, o Sillicon Valley do deserto, liderando o sector dos cartões de telefone e telemóveis com a empresa de sua criaçao, Bitaka Tunisie. Nao é de estranhar que alguns rankings de popularidade o situem como o quinto tunisino mais famoso do país, numa lista encabeçada pelo Picasso da bola, Darragi, que numa ironia cruel parece estar prestes a assinar pelo seu rival figadal no Minho.
Como afirmávamos antes, os intermináveis brainstormings em frente à ardósia do pré-fabricado antes das sessões de treino cadernético conduzem a busca novamente à origem. Se recuarmos no tempo e no texto, o ímpeto com o qual agora Ziad empunha o jasmim é o mesmo dos 50 golos em Portugal, o mesmo dos 25 golos nas ruínas de Kobe, o mesmo da humildade sob a batuta de Sacchi, o mesmo no desafio ao establishment oligárquico. Uma raposa do deserto a caminhar no precipício, entre a glória e o abismo, entre o céu dos golos e o inferno dos fundos de investimento. Todos os elementos a fechar o círculo. E a guardar as bolas, os pinos e os coletes, que amanhã volta a haver treino.
quarta-feira, junho 08, 2011
segunda-feira, junho 06, 2011
Shukran, Wenderson
Várias obras ficaram por concluir, desde logo a relativa ao Vitória minhoto, síntese da bola no rectângulo nessa mítica temporada iniciada no verão quente de 1993, adiadas por singulares incursões cadernéticas repentinas e inevitáveis como uma arrancada de Caetano junto à lateral.
Assumimos o dever pelo regresso ao berço, sem porém chegar a confirmá-lo. Ainda assim recusamos esquecer os ensinamentos que esse singular plantel do futebol português nos deixa, enquanto amálgama ontológica de um irrepetível conjunto de heróis da relva, capazes de em si resumir a génese do futebol português dos últimos 30 anos. O patrão de bigode, a joia africana encravada no miolo de um escândalo de corrupção, o fantasista português, o magrebino carro de assalto feito ponta-de-lança, são tudo casos que tornam a bola que por cá se joga um incomum caldeirão de sabores exotico-bolisticos.
Seria de pensar que esta confluência de historiografias, estilos e idiossincradias aparentemente inconcilaveis só seria possível de ser encontrada, ainda que raramente, num colectivo de futebolistas. Não é assim e nós agradecemos. Por vós também e em antecipação.
Quando estes vossos camaradas do peão à chuva se deparam com um caso em que um só jogador é, em si mesmo, um melting pot de duas diferentes culturas da bola, tão distintas que jamais se pensaria poderem ser conciliáveis no colectivo, quanto mais no singular,
não temos como escapar a mais um momento em que se impõe uma abordagem específica, tal a raridade do espécimen.
O desafio está novamente relacionado com o momento em que escrevemos, o final desta temporada, e, como não, com o facto do futebol ser um sistema dinâmico e complexo.
Não é a primeira vez que a topografia do esférico luso nos inclina para a teoria do caos. Já sabemos que quando uma borboleta bate as asas aqui, Anderson Popó, antigo atleta do Salgueiros, desiquilibra uma transição defesa-ataque no Vissel Kobe japonês. O que a realidade nos demonstrou também nesta temporada foi a relação intrínseca entre o afundar da Naval figueirense, a consagração arsenalista contra os Shengens da bola e a revoluçao de Jasmim que assolou não só os estádios como as sedes dos clubes desportivos e recreativos de Sidi Bouzid a Tripoli.
A relação reside quiçá na chuteira esquerda de um vagabundo da ala que hoje respira tranquilo à sombra da história e das festividades do apóstolo Lucas em Aradippou, florescente subúrbio de Larnaca nesse enclave esquizóide entre a tradiçao helénica e o fulgor torrencial otomano, o Chipre. Ou o Pequeno Qatar, como é conhecido nos mentideros do agenciamento de futebolistas e também num snack-bar da Bobadela. Falamos de Wenderson Arruida Said, de Wender e do jasmim da sua revolução tranquila, algures entre o céu, a guerrilha e a linha de fundo.
Implacável lançador de fatahs no seu flanco, sempre sempre com as meias para baixo e olhos de garoupa a fitar o horizonte, a este Mahdavikia do Mato Grosso em versao canhota poderia servir também a alcunha d’O Tapete, mágico e majestuoso a voar sobre o lateral direito.
O desafio, a tal singularidade que referíamos, resume-se ao enigma de como interpretar a existência de um tropicalista da lateral canhota no mesmo corpo que um imam do drible curto?
Ainda que nem como tragédia nem como farsa, a história repetiu-se, já que chegou à Figueira da Foz tal como ao Chipre anos depois para consolidar equipa ainda aturdida por uma subida de divisão revolucionária.
Na sua primeira etapa em Braga, confirmou o estilo e aguçou a substância: da ala ao interior, as mudanças de velocidade e a força nas bolas paradas (quanto mais próximas melhor), simbolizava não só a confluência de culturas já referida como uma ponte entre a tradição sóbria arsenalista dos companheiros Barroso e Castanheira, a chispa de Glauber e a exótica modernidade de Hiroyama, Bordi ou “Palillo” Vanzini.