segunda-feira, junho 06, 2011

Shukran, Wenderson


A linha editoral da Caderneta da Bola, como a bola nos pés do mago marroquino farense Hajry Redouane, como a carreira da ex-promessa gloriosa João Peixe ou uma temporada do trajecto de Barrigana, pauta-se pela aleatoriedade e pela inconstância.
Várias obras ficaram por concluir, desde logo a relativa ao Vitória minhoto, síntese da bola no rectângulo nessa mítica temporada iniciada no verão quente de 1993, adiadas por singulares incursões cadernéticas repentinas e inevitáveis como uma arrancada de Caetano junto à lateral.

Assumimos o dever pelo regresso ao berço, sem porém chegar a confirmá-lo. Ainda assim recusamos esquecer os ensinamentos que esse singular plantel do futebol português nos deixa, enquanto amálgama ontológica de um irrepetível conjunto de heróis da relva, capazes de em si resumir a génese do futebol português dos últimos 30 anos. O patrão de bigode, a joia africana encravada no miolo de um escândalo de corrupção, o fantasista português, o magrebino carro de assalto feito ponta-de-lança, são tudo casos que tornam a bola que por cá se joga um incomum caldeirão de sabores exotico-bolisticos.

Seria de pensar que esta confluência de historiografias, estilos e idiossincradias aparentemente inconcilaveis só seria possível de ser encontrada, ainda que raramente, num colectivo de futebolistas. Não é assim e nós agradecemos. Por vós também e em antecipação. 

Quando estes vossos camaradas do peão à chuva se deparam com um caso em que um só jogador é, em si mesmo, um melting pot de duas diferentes culturas da bola, tão distintas que jamais se pensaria  poderem ser conciliáveis no colectivo, quanto mais no singular,

não temos como escapar a mais um momento em que se impõe uma abordagem específica, tal a raridade do espécimen.

O desafio está novamente relacionado com o momento em que escrevemos, o final desta temporada, e, como não, com o facto do futebol ser um sistema dinâmico e complexo.
Não é a primeira vez que a topografia do esférico luso nos inclina para a teoria do caos. Já sabemos que quando uma borboleta bate as asas aqui, Anderson Popó, antigo atleta do Salgueiros, desiquilibra uma transição defesa-ataque no Vissel Kobe japonês. O que a realidade nos demonstrou também nesta temporada foi a relação intrínseca entre o afundar da Naval figueirense, a consagração arsenalista contra os Shengens da bola e a revoluçao de Jasmim que assolou não só os estádios como as sedes dos clubes desportivos e recreativos de Sidi Bouzid a Tripoli.

A relação reside quiçá na chuteira esquerda de um vagabundo da ala que hoje respira tranquilo à sombra da história e das festividades do apóstolo Lucas em Aradippou, florescente subúrbio de Larnaca nesse enclave esquizóide entre a tradiçao helénica e o fulgor torrencial otomano, o Chipre. Ou o Pequeno Qatar, como é conhecido nos mentideros do agenciamento de futebolistas e também num snack-bar da Bobadela. Falamos de Wenderson Arruida Said, de Wender e do jasmim da sua revolução tranquila, algures entre o céu, a guerrilha e a linha de fundo.

Implacável lançador de fatahs no seu flanco, sempre sempre com as meias para baixo e olhos de garoupa a fitar o horizonte, a este Mahdavikia do Mato Grosso em versao canhota poderia servir também a alcunha d’O Tapete, mágico e majestuoso a voar sobre o lateral direito.
O desafio, a tal singularidade que referíamos, resume-se ao enigma de como interpretar a existência de um tropicalista da lateral canhota no mesmo corpo que um imam do drible curto?
Ainda que nem como tragédia nem como farsa, a história repetiu-se, já que chegou à Figueira da Foz tal como ao Chipre anos depois para consolidar equipa ainda aturdida por uma subida de divisão revolucionária. 

Recuando, nada disto é de todo inesperado: trata-se de um profissional nascido em Quiratinga, a Princesinha do Leste no calão leninista dos garimpeiros do Mato Grosso, no mesmo dia em que, no outro lado do Atlântico, Nick Hornby cumpria 18 anos. Consagrado para o desporto rei entre o decano clube Dom Bosco, o Leao da Colina, e o Esporte Clube Democrata, também de Minas Gerais, consolidou em meados dos noventa os atributos que fariam dele um ayatollah da bola underground amazónica. Foi aliás no relvado do Mamudão, santuário do Democrata, e diante da feérica torcida Pantera Cor de Raça que Wender assistiu impotente ao golo número 500 da carreira do lendário Túlio Maravilha, então ao serviço de um Cruzeiro onde também alinhava Valdo.
 
Daí para o Bento Pessoa, onde ao longo dos seus 92 jogos em 3 épocas, conviveu com artífices do calibre do histórico Canita, proeminente todo-terreno figueirense, o fleumático Jean-Pierre, a ex-promessa de Paranhos, o virtuoso Schuster (ou Rui Miguel, em dialectro transmontano), o incombustível Bento do Ó, Sérgio Lavos ou até Nabil Baha, franco-marroquino francamente felino. Não demorou por isso a ser captado pelo Sporting de Braga e a a ser um dos protagonistas da transformação radical de um clube ao qual chegou pouco acima da linha de água para deixá-lo no quarto lugar a sete pontos do campeão, numa progressão pletórica de futebol eficaz e testimonial da férrea militância de Wenderson Said.
Na sua primeira etapa em Braga, confirmou o estilo e aguçou a substância: da ala ao interior, as mudanças de velocidade e a força nas bolas paradas (quanto mais próximas melhor), simbolizava não só a confluência de culturas já referida como uma ponte entre a tradição sóbria arsenalista dos companheiros Barroso e Castanheira, a chispa de Glauber e a exótica modernidade de Hiroyama, Bordi ou “Palillo” Vanzini.
 
Na sua segunda etapa, já na Pedreira e curiosamente após uma curta estada a partir pedra num Lumiar traumatizado por finais perdidas e arlequins de Lezíria, veio a maturidade e, porque não dizê-lo, a acomodação. Said era o mesmo numa equipa que baixava preguiçosamente dos 58 pontos, que perdia algum fulgor, um terreno outrora fertil e que agora minguava em desilusões de “ex-futuros grandes”, como o “ex-ídolo da Bombonera”, “ex-novo Maradona” e demasiado “ex” dele próprio, Carlos Marinelli, ou Hugo Leal ou Delibasic. Demasiadas estrelas cadentes a desvir o tuaregue do seu oasis. Nem de propósito, encontrou-o em Belém, sem menino Jesus mas com Cândido Costa, José Pedro a fazer de santo carpinteiro ou de Noé, numa barca que afundou ao largo do padrão, falhando manter-se à tona da Primeira Divisão.
 
Ancorar no Chipre, entre o odor do cedro, das folhas da parra e da tensão prévia à liberdade, significava não só manter-se na primeira liga, ainda que noutra longitude, mas também almejar uma tranquilidade que não tinha há várias épocas, ainda que na primeira tenha sofrido as inclemências de um play-off de fundos. Além do mais, poder voltar a partilhar balneário com Evandro Roncatto ou o Gabriel “Gavilán” Gómez (antigo espólio do seu multicultural Belenenses, com quem poderá mesmo ter chegado a jogar a Copa América em matraquilhos algures num tasco da Junqueira) ou membros das ilustre armada lusitana em costa fenícia como o beirao Nogueira, curtido para as lides entre Paim e Kifuta na escola de Alvalade, ou o recém adquirido Paulo Costa, forcado da Moita há anos abandonado à pega do Minotauro, ou até mesmo a estrela salvadorenha “Cheyo” Quintanilla, pura faísca crioula.

Wender é, enfim, todos eles, mais a busca incessante da paz que só os que atravessam o deserto sabem o que é e expressá-la. A sua Sidi Bouzid é o flanco esquerdo, a sua voz a bola e o corpo movido pelo olhar perdido, a carregar no sprint todo o Mato Grosso, a Figueira, o Gerês, Monsanto e os cedros mediterrânicos em ebulição. Por agora em paz mas nisto da bola, como na vida, há muito jogo ainda para fazer. Inchalla, senhor Said.

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