sexta-feira, agosto 13, 2004

Em véspera de comunicado após a reunião de emergência de todo o staff técnico na Torre da Caderneta, os obreiros desta vossa esmerada publicação lançam-se, em esforço, num carrinho heróico rumo à bandeirola do Dicionário Português-Futebolês. Desta feita, e acompanhando os avanços vocabulares revelados, nos últimos meses, pelo elenco comentarista da bola viriata, a expressão escolhida é o apêndice anglicista do centrocampista actual: o box-to-box. Enquanto que a maioria dos anglicismos herdados da pré-modernidade do nosso futebol (e dos nossos comentadores) começam a cair em desuso, como keeper e score, quando não mesmo banidos do léxico empregue (vide a fraca adesão da sociedade civil à palavra Souness, por exemplo), eis que a intelligentsia do esférico falado estabelece o paradigma para O Artista Anteriormente Conhecido por Trinco Moderno. Em mais uma confirmação wildiana (de De Wilde) de que a vida imita a arte, verificamos que a expressão entrou, com tanta discrição quanta eficácia, nos media portuguesas, ao ponto de todos os dias ser possível lê-la, ouvi-la, enfim, audiovisualiá-la, e - e aqui estão traiçoeiramente espetados os pitons nas costas do futebol - uma série de jogadores ganham subitamente uma dimensão e uma nomenclatura que, por vezes, parece bastar para justificar a atenção aos mesmos. O médio box-to-box é assim chamado por apresentar como atributo maior o facto de fazer o seu jogo em correrias entre uma box (a sua área) e a outra (a área adversária). Esta expressão é redutora, redundante e perigosa. Redutora e redundante porque tende a fixar como característica fulcral do jogador, o terreno em que se move, isto é, o espaço que no relvado lhe é destinado para o desempenho das suas funções técnico-tácticas. Aqui sangra até à morte o esteta e o amante da bola: um jogador é muito mais do que a superfície de relva que lhe é prescrita a pisar. É por isso que os genéricos "médio" ou "avançado" não passam disso mesmo, de referentes genéricos para algo que será caracterizado de seguida. Nem o rótulo "avançado" foi alguma vez suficiente para traduzir o inferno de Ricky e Marlon Brandão, como jogadores do quilate do aveirense Eusébio ou Carlos Costa [este o arquétipo do dito "box-to-box"] nunca necessitaram de artifícios linguísticos para nos deleitar com o seu futebol. É redutora por isso e redundante na medida em que é tarefa de um médio cobrir o centro do terreno, sendo que este, em casos limite pode ir de uma área (zona defensiva) até à outra (zona ofensiva). E perigosa, porque coloca em causa a tipologia quadripartida do gr-df-md-av, esvaziando-a e lançando-a na ambiguidade. O "box-to-box", dirão os lacaios do teórico G.Alves, é o justo reconhecimento do centrocampista que soube evoluir e completar-se, estendendo o seu raio de acção, ajudando o futebol a dar o seu salto qualitativo. Falso. A lacuna analítica está precisamente no facto de que a caracterização comum de um médio como "box-to-box" é subrepticiamente elogiosa, quando desde a Laranja Mecânica de Rinus Michels (e o equivalente português, o Feirense de Bock e Ousmane) sabemos que os jogadores são multifuncionais e podem ser intérpretes versáteis de várias posições tácticas. Regressando a Carlos Costa, o facto de ter feito duas excelentes épocas no Beira-Mar, uma equipa com pouca expressão apesar de ter dado ao mundo Abdel Ghani, nunca valeu aos cegos, que se limitaram a referi-lo como médio-centro esforçado, recusando-se a vislumbrar essa tal característica de "ir de uma área à outra", ao passo que estamos em condições de assegurar que Maniche, considerado o exemplo maior do "box-to-box" português, ocupa dois terços da sua colecção VHS com as lições do professor moliceiro e farense. A finta sapienza da bola falada substitui os clássicos pelos ultra-congelados, ao votar ao esquecimento jogadores que pautam a carreira pela regularidade (em detrimento dos jogadores de grandes momentos), pelo futebol físico em estádios menores, pelo trabalho de sapa longe das objectivas televisivas ou das penas dos diários nacionais. E a expressão "box-to-box" é um economato mental, uma espécie de abreviatura de artista de uma arte infelizmente cada vez mais abreviada de essência.

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