Historiografia, narrativas e estatísticas de figuras e episódios lendários da bola, essa arte geométrica. Envia-nos mail para a.caderneta.da.bola@gmail.com .
quarta-feira, janeiro 19, 2005
A Caderneta da Bola regressa afinal do coma festivo a que esteve acometida, assim como da letargia criativa e excesso de outras coisas para fazer, sobretudo para provar e voltar a vincar periodicidade mais errática que as exibições de Marco Tábuas. Postos os entretantos, este regresso deve-se sobretudo a uma aturada pesquisa dos vários paradigmas tácticos que pautaram o futebol português, isto num momento, notem bem, em que a cultura táctica (outra entrada de dicionário que ficará para mais tarde) lusitana é praticamente um porta estandarte da alma de todos nós, incarnada que está num sadino endiabrado em terras de Sua Majestade. A pesquisa, o laborioso separar do trigo e do joio, o essencial do acessório entre apontamentos de Abel Braga e Bernardino Pedroto, a geometria descritiva de Henrique Calisto, permitiu descobrir que entre o 4-4-2 e o 4-3-3, existe uma configuração táctica singular, talvez a mais emotiva e provavelmente a menos apurada, escondida no final dos cadernos dos cursos de treinador da federação, rasurada pelo desespero. Selada num envelope a abrir apenas à entrada para os 80 minutos de um jogo de nervos, esta táctica entranhou-se na história sob o nome de chuveirinho. O chuveirinho é, claramente, a expressão táctica da angústia, uma predisposição de jogo tão nítida na tradução do estado de espírito dos executantes que a sua eficácia raras vezes emerge. O que é, afinal? É um sistema de jogo armado com os elementos mais recuadas da equipa a tentar defender o forte e a bombear bolas para a frente, uma linha média colocada imediatamente antes da grande área adversária, para recuperar a segunda bola (outra expressão a explorar ulteriormente) e os ressaltos que sobrem do resto da equipa, acampada na grande área do rival a tentar inventar jogadas a partir dos bombardeamentos dos colegas atrasados. Muitos cruzamentos, muitos passes em balão, muitas tentativas de semear a confusão, como saltos para a piscina - reparem: chuveirinho e saltos para a piscina; claramente uma táctica concebida por um nativo de Peixes. A questão astrológica é, também ela, controversa, uma vez que determinados analistas continuam a argumentar que a solução táctica emocional e desesperada é mais própria de nativos com Sol em Carneiro.
Adiante, o chuveirinho é, como a Caderneta já avançou, mais frequente em finais de jogos ditos impróprios para cardíacos (oh meu El Pibe, outra!), em que uma equipa tenta reduzir uma desvantagem que não lhe é consentânea com o prestígio ou objectivos, ou um daqueles empates encravados Made in Bessa. Todavia, o detalhe mais importante e aquele que importa reter, é a carga de fiasco que o termo acarreta. Autêntica expressão de uma desolação kierkegaardiana, o treinador que ordena o chuveirinho sabe que não é capaz de fazer melhor naquele momento. Assume que falhou até ali, que a equipa partiu irremediavelmente, e que, mesmo que ganhe, restam-lhe as chagas de ter descido ao grau zero da criação futebolística. Prova disso mesmo é a alteração posicional mais frequente nestes casos de psicose da bola, a subida de um defesa central a ponta de lança. Ironia das ironias, há jogadores que usaram e abusaram desta esquizofrenia para brilhar e fazer nome na história da bola lusa, casos de João Manuel Pinto no Porto de Robson ou Paulo Pereira, anos antes um herói no Estádio da Luz. Claro está que nenhum treinador passa por esta experiência de calvário quase bíblico incólume, porque sabe que mesmo atingido o objectivo, houve uma espécie estranha de batota. Muitas vezes, em casos clínicos extremos, o chuveirinho nem parte da iniciativa do treinador, já derrotado dentro de si mesmo e remetido ao fundo do banco, mas dos jogadores, bloqueados pela pressão e pela obsessão do golo, um autêntico acto falhado freudiano.
O objectivo intermédio, antes do golo, é, no entanto, a acumulação de cantos, porque garante um cruzamento para a área e um robustecimento das estatísticas no final do jogo, esse adereço indispensável a qualquer vitória moral. O que já de si é uma assunção da falha irrevogável.
Um último detalhe sobre este filho bastardo da arte de bem tratar a redondinha é o facto de ser um fenómeno claramente transclassista. Desde os grandes aos pequenos (para quem acredita em diferenciações desta índole), desde os infantis até aos séniores, toda a equipa já passou por aí, seja o Manchester United (na final da Champions League em Camp Nou contra o Bayern, em que a coisa, claramente, resultou) ou o Leixões (na final da Taça de Portugal contra o Sporting, desaproveitando assim a nobre arte da bola no chão do artesão Detinho).
É como uma fraqueza da espécie, um vício tribal, uma dessas imperfeições que nos lembram que até Capello e Diamantino Miranda são humanos, aliás, a expressão da persona da bola, em tudo aquilo que tem de bom, mau e por vezes assustador. Uma questão velha, tão velha quanto o medo sobre o relvado.
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