quarta-feira, setembro 15, 2004

Adiando por mais uns dias o encerramento de actividades da publicação, decisão devidamente ponderada face a uma conjuntura de factores verdadeiramente octavio-machadianos, a Caderneta da Bola volta-se de novo para os intérpretes, afinal os herdeiros dessa alquimia primordial que é a Bola com B maiúsculo. Nesta era de secularização do sagrado que vai arrastando consigo os santos para as bases de barro que lhes molda os pés, é assaz curioso o mecanismo que vem dominando a caracterização técnica dos jogadores desde a segunda metade dos anos 80 por intermédio, justamente, da cognominação segundo grandes glórias do passado. Fenómeno mais comum em grandes clubes (pela profusão de referências ao palmarés da casa) e em clubes de pequena dimensão (pela dimensionalização do espectáculo mundial à escala de bairro) do que propriamente em clubes de segunda linha, a retórica da alcunha parece-nos benéfica e interessante porque recupera a história, eleva as expectativas e, se o jogador for de facto bom, não despersonaliza em nada o artista, acabando este por fazer valer o seu próprio nome acima do epíteto. O grande problema dessa história mal contada que é o futebol português é que o caso contrário a este último é a bola nossa de cada domingo: pobre Litos, o Platini Português do Sporting, reduzido hoje a aprendiz de Ulisses Morais no Estoril (homérico mister traído pelos seus argonautas); infeliz Carlos Manuel, o Laudrup do Sado, ídolo em Setúbal e desterrado no esquecimento após a transferência sensação para as Antas; David Hoppfen, o Cannigia do Louletano, promissor predador ofensivo dos Algarves há uns anos e... promissor predador ofensivo de lado nenhum, agora; e Orlando Martins, o Bakero de Felgueiras, filho explosivo da ala da terra, fugaz encantador de sevilhanas e condenado a esse Tarrafal da Bola que é ser orientado por Luís Norton de Matos. Estes exemplos sortidos da lista interminável são porém inócuos quando comparados ao estigma de ostentar na vox populi a herança do mais conhecido jogador de sempre do Sporting de Tomar, o luso-moçambicano Eusébio. Raros são os jogadores que resistem à glosa do novo Eusébio com alguma distinção, mas os que se demonstram capazes adquirem essa aura quase mítica do semi-deus, como o aveirense Eusébio, já aqui citado. Outros carregam o estigma como Jesus carregou a cruz (Jesus, o Cristo, não o defesa corresponsável pela heróica campanha do Águeda na subida à Segunda de Honra em 1990) e sobrevivem para a posteridade do futebol semeados como agulhas nos joelhos de Paulo Futre: decisivos, incontornáveis, marcantes mas extraordinariamente traumáticos para quem vê e gosta de bola. Dois nomes para incorporar este arquétipo. O primeiro foi descoberto no seu país natal, Angola, pelo rival do Futebol Benfica, o Sport Lisboa, para integrar o plantel na ida temporada de 1994-1995. Este proto-herdeiro da pantera ganhou o cognome quando despertava para os Palancas e rapidamente Portugal foi introduzido a Fabrice Alcebíade Maiéco, olhar vítreo, remate forte, velocidade espasmódica, nome de código Akwá estampado nas manchetes e nos bigodes das bancadas. Bem constituído, era um ponta-de-lança sem ser finalizador por excelência, dado que tinha apetência para descair para a direita e tentar o tiro ainda antes da marca do penálti. O verbo tentar é aqui extremamente importante porque os tiros desta águia nunca surtiram efeito. Pormenor lateral mas com eventual relevância explicativa: o jogador nunca foi veemente no afastamento do epíteto, parecendo até orgulhoso com a comparação. Ora, comparando com outros casos, nunca um jogador sem créditos firmados deve mostrar proximidade com a vanglorificação do clube que o recebe. Por outras palavras: todos os outros exemplos acima expostos criaram o nome intramuros, nunca a um continente de distância num campeonato desconhecido da esmagadora maioria dos que o apelidaram. Adiante, Akwá não singrou, fez apenas 2 jogos na Primeira Divisão, e daí passou para o Alverca, onde, em duas temporadas e 36 jogos fez 13 golos. Pouco significativo para um titular da Selecção de Angola e para um ex-herdeiro da camisola da pantera negra. Todavia, o Benfica não o deixou terminar a segunda época no ribatejo e fê-lo regressar para efectuar 3 jogos em branco. Na Luz ascendeu aos céus prematuramente e na Luz desceu aos infernos, também prematuramente. Para a história, no que concerne à ligação ao clube de Benfica, fica o curioso dado que aquele que era apontado como o novo Eusébio aos 18 anos, era afinal considerado um jogador vulgaríssimo aos 20. De Lisboa para Coimbra, onde apenas efectuou um jogo (uma vez mais em branco) e de Coimbra para o Qatar, onde saltimbanca até hoje, marcando golos e falando português ocasionalmente com os treinadores portugueses que ali vão passando. Na selecção continua a dar cartas, tendo marcado já dois golos no apuramento para o Mundial 2006, o último dos quais frente à temível selecção do Ruanda. Quem sabe se o seu destino não teria sido diferente se aqui tivesse sido apenas Akwá, um jovem jogador a precisar de tempo, e não Akwá o novo Eusébio? O segundo nome é de outra casta e ressalva, face a Akwá, o importante facto de ter sido formado nas escolas do Futebol Clube do Porto, clube de ténues relações com o Sporting de Tomar, logo pouco avesso ao estrelato de Eusébio. Nélson António Soares da Gama, nascido em Bissau a 2 de Agosto de 1972, foi crescendo para o futebol nos juvenis das Antas até se estrear, com 19 anos na equipa principal do FCP em 1990, época em que actuou em 11 partidas. No entanto, a apoteose veio no final desse ano desportivo quando ajudou a conquistar, ao lado de Luís Filipe Madeira (um jovem da Cova da Piedade), Manuel Rui (um tipo franzino da Damaia) e Gil (apenas Gil, jovem de 19 anos), o mundial de sub-20 no Estádio da Luz. Se a Luís Filipe Madeira chamavam já o novo Figo e a Manuel Rui começavam a chamar o novo Rui Costa, ao Nélson António, baptizado para a bola como Toni, começavam a chamar-lhe Toni, e alguns o novo Eusébio. Toni soube ignorar sabiamente e, na época seguinte, prosseguiu o que se previa uma carreira brilhante. O que se previa mal, visto que, se na época seguinte fez 12 jogos e até marcou um golo, já em 93 só teve tempo de fazer dois e ser enviado para Braga, onde vingou a transferência com 4 golos em 19 jogos. De Braga para Aveiro, ostentando uma camisola que já havia pertencido àquele a quem lhe tinham já emprestado o nome, em 17 jogos e 3 bolas nas balizas adversárias. Do clube da Ria voltou ao Porto, a sua compreensível Meca pessoal, para alinhar de vermelho (uma vez mais o paralelismo com o outro) em Paranhos, afinal não muito longe das Antas. Três épocas, amizade com Joni (Osvaldo Roque, o Elvis de Luanda, rival de Akwá no Qatar em 2003), 72 jogos mas descrescência de golos (7 na primeira, 4 na segunda e 3 na terceira época). Em 98 parte assim para a Madeira onde, no Marítimo, consegue completar duas épocas e tecer o assombroso e quiçá recordista historial de 9 épocas seguidas na Primeira Divisão, 148 jogos e 25 golos, portanto 0,17 golos por jogo. Daí para Badajoz, depois para Leça e depois, já com 30 anos, titular indiscutível do Vilanovense na Segunda Divisão B. Para a história fica um jogador que não conseguiu fazer justiça às promessas firmadas no campo, que nunca desceu abaixo do Mondego em clubes de Portugal continental, mas que soube, honra lhe seja feita, afastar-se do cognome para moldar uma carreira, ainda que titubeante. Caminhos diferentes de quem lhe foi dado a ver, de si próprio, um baço reflexo em cristal de pedestal alheio. E no futebol, fazer pela vida é partir esse cristal.

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