sexta-feira, outubro 15, 2004

A ocidental bola lusitana é pródiga em idiossincrasias que a tornam, justamente, ocidental e lusitana, e não outra coisa qualquer. Uma dessas idiossincrasias, epifenómenos futebolísticos de singular curiosidade, é afigura quasi-estatutária do treinador-bombeiro, também apelidado de salvador, reserva moral e, na maior parte dos casos, "prata da casa" [Nota: não se trata de uma entrada do Dicionário Português-Futebolês pois, emrigor, não se trata de um artifício terminológico ou de uma figura de retórica]. O treinador-bombeiro é o homem temporariamente certo, no lugar absolutamente certo, no pior momento possível. E, paradoxalmente, ele só é o homem certo quando o momento não podia ser mais errado. Falamos de idiossincrasias específicas da bola lusa, porque em nenhum outro universo futebolístico, suspeitamos, é tão evidente a proeminência de dados misters, feita de um cruzamento bizarro entre prestígio endoclubístico, carisma do passado e disponibilidade para agarrar no leme quando já os ratos se apressaram a escapar ao naufrágio. Regra geral, a competência ou é duvidos ou assim se torna, tal é a dificuldade em aferi-la face às iminentemente drásticas circunstâncias. Dentro desta curiosa sub-classe profissional existem, claro, duas grandes divisões: de um lado, os treinadores aos quais esta descrição assenta apenas em relação a um clube -vide Toni ou MárioWilson no Sport Lisboa, Fernando Mendes no Sporting Clube (este num contexto no mínimo dantesco) ou o há poucos dias referido Caetano, no Tirsense - ou os que fazem dessa mesma condição um modo de vida, em aleivos de pseudo-reformismo esquizóide geralmente de fraca eficácia desportiva. A estes voltaremos já de seguida. Agora, porquê aqui, entre nós, e não além da Taprobana? Que motivos encontra a chuteira cósmica para conduzir deste modo a esfera da vida, aqui nos estádios portugueses? A resposta encontramo-la, claro está, na história e nas profundezas da trágica e mal explicada identidade nacional. O treinador-bombeiro é a persona do mito sebastianista do homem que virá da bruma salvar a nação, neste caso o clube, das trevas históricas, neste caso da descida de divisão ou do não apuramento para as competições europeias. Não é mais do que a personificação da esperança num dado momento em que ela é, mais do que nunca, necessária. Daí as variáveis fundamentais da escolha serem a nostalgia da glória passada, o carisma granjeado ao longo de anos de dedicação e a disponibilidade em dar o peito às balas, como o corpo tenro do real adolescente nos confins do Maghreb se deu às lanças mouriscas, em detrimento do rigor e pragmatismo em dar a táctica como deve ser de acordo com as características dos desafios e dos jogadores do plantel. Não se queira, com isto, desacreditar toda uma classe de mártires que teve a audácia de se lançar às feras. Alguns deles conseguiram, contra todas as expectativas (incluindo as próprias, desconfiamos) atingir um ou outro patamar de sucesso desportivo, como Toni, por exemplo, ou José Romão, que a dada altura da carreira chegou a apresentar-se como especialista em salvar clubes do afogamento. A grande questão é que esta mistificação confina as expectativas ao "mal menor" e reafirma a temporalidade finita do treinador-bombeiro. A partir daqui, cada caso é um caso. No primeiro grupo destacamos Mário Wilson, um dos grandes responsáveis pela ascensão de Akwá ao trucidante estatuto de "novo Eusébio", que chegou a alvitrar que o pé esquerdo de El Hadrioui, pesadelo da canhota em Casablanca, parecia uma mão, tal era a precisão no passe, seguindo todavia como "o velho capitão". Já José Romão, ainda idolatrado na ala mais ortodoxa dos tiffosi de Alverca, conseguiu salvar por duas vezes o clube da descida de divisão, o que lhe permitiu manter-se em pé na corda bamba durante algumas épocas, até cair redondo na rede do trapézio do Circo Madaíl. Este último é um digno representante dessa fina estampa de timoneiros que fazem do mito do salvífico um verdadeiro curriculum vitae, com a mediania na leitura táctica, a deficiência na metodologia de treino e a pequenez do jogo para o empate mascaradas com uma aura de sobrevivência octaviomachadiana. No entanto, e apesar de José Romão ser um candidato sério, entre outros, a levar a palma nesta parada de estrelas, o paradigma, parece-nos, continuará a ser Manuel Cajuda. Senhor de um sinuoso percurso marcado por um misticismo de duplo sebastianismo - o do salvador D.Sebastião e o do reformador quase obtuso Sebastião José de Carvalho e Melo - bem como pela extraordinária proeza de a todos os clubes ter um vínculo emocional dito de longa data. Este atributo tem uma importância singular: geralmente afirmado por frases tão caras ao mister como "vivi muitas alegrias na instituição [tal]" ou "é tempo de seguir em frente", acaba por deixar implícito um apego seminal a um longo cortejo de clubes, desde o Sporting de Braga ao Marítimo, passandopelo Farense (e agora o Beira-Mar), quando, em realidade, não se denota evolução técnica nem capacidade de armar uma equipa para discutir um jogo de igual para igual com um clube mais de três lugares acima na tabela classificativa. Claro que o céu é o limite, e Cajuda já falou em grandes e mesmo em selecção. No fundo, um pouco à laia de D.Quixote, só que em vez de lança tem dois trincos, em vez de moinhos tem os árbitros e os "apesar de tudo, quero dar os parabéns aos meus jogadores" e em vez de moral da história tem, no máximo, um empate suado a duas bolas no Bessa, ou coisa que o valha.

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