domingo, dezembro 28, 2003

A voz. Detalhe importante na formação e composição de um futebolista, a voz tem sido esquecida ao longo dos anos. Não é à toa que a língua portuguesa cunhou, através dos tempos, a expressão "voz de comando". O comando, o carisma da liderança é o que distingue, por exemplo, um Portela de um Tó Sá. Sim, Portela granjeou durante épocas a fama de lateral direitocorrectíssimo, competente a defender, pontapé forte, o arquétipo do lateral mediano. Mas Tó Sá é o nome que emerge quando os adeptos sadinos se sentam à mesa numa tasca da baixa de Setúbal a relembrar os laterais direitos do histórico clube do Sado (à direita, porque José Rui, esse lateral quase selvagem, nunca se lhe comparou e à esquerda Rui Carlos ainda traz lágrimas de saudade aos mais indefectíveis da Fúria Sadina). Aqueles que tiveram a oportunidade de assistir a um Vitória de Setúbal-Farense in loco facilmente discirnem que Tó Sá é um lateral de voz mais profunda que Portela. E este é um exemplo frágil, já que , salvo raras excepções, o lateral é mais solicitado que solicitador. Se falarmos de centrocampistas, como é o caso, a falta de voz torna-se um problema ainda mais grave. Infelizmente, a aturada investigação historiográfica dá-nos razão. Um caso paradigmático, o que trazemos aqui hoje, é o do maestro brasileiro Carlos Miguel. Contratado pelo Sporting naquela que é considerada a Idade das Trevas do clube verde-e-branco (as dinastias depois de Jozic, doravante designadas de DC, e antes de Inácio, AI). Nesse período de seca, em que o leme esteve inenarravelmente entregue a figuras como Carlos Manuel (que ainda hoje faz valer uma carreira de treinador às custas de um pontapé em Estugarda, carreira essa que encontra paralelo somente em nomes como Diamantino Miranda ou Bernardino Pedroto), Vicente Cantatore e, claro, o pioneiro dos três trincos Octávio Machado, Carlos Miguel chegou a Alvalade rotulado de "melhor número 10" no activo em terras de Vera Cruz. Ídolo no São Paulo, o regista nunca chegou a singrar no Sporting, onde prometeu na pré-época mas onde, em jogos oficiais, nunca pegou na equipa como era esperado. E estamos a falar de uma época em que os adeptos sportinguistas ainda estavam escaldados com o caso Roberto Assis, esse médio-centro vindo da Suiça com o colossal Ahmed Ouattara (e que hoje é empresário do seu irmão Ronaldinho, jogador do Barcelona) e perplexos com o fenómeno paraguaio César Ramirez, segunda encarnação de Cantiflas e ídolo do Topo Sul do defunto José de Alvalade, desde que foi a Israel fazer ao Beitar de Jerusalem o equivalente futebolístico daquilo que o Hamas tem vindo a fazer em Telavive. Voltando a Carlos Miguel, manteve-se o mistério do ocaso por mais de meia época. Porquê? Nenhum problema de adaptação noticiado, nenhuma lesão grave, nenhuma explicação oficial. Até ao dia em que a equipa da Caderneta da Bola se deslocou ao campo de treinos leonino, no âmbito de uma cadeira do Mestrado em Futebolês Contemporâneo - O Caso Português. Um treino, uma única sessão, talvez bastasse para descortinar o porquê do baixo rendimento da equipa em geral e do brasileiro em particular. E a realidade é que, uma vez chegados, apenas uma voz se distinguia das demais, a de Pedro Barbosa, o falso lento do futebol poético, por vezes belo e genial, por vezes ausente e superfluo. A voz, firme, segura, o "deixa, que é minha!" pronunciado na perfeição, o "estás só!" soprado com segurança, o clássico e eterno "vai, caralho!" articulado irrepreensivelmente. No meio de tudo isto, Carlos Miguel invisível. Até que, num dos raros momentos de silêncio, uma voz soa - "Aqui, passa passa!". A Caderneta olha em volta, pensando que a voz pueril que acabara de ouvir viera talvez de um miúdo a brincar com o pai. Uns segundos de desconcentração e, quando os olhos regressam ao relvado, a bola está nos pés de Carlos Miguel, que a devolve a companheiro tornado a gritar. O cenário grotesco do número 10 com voz de eunuco era demasiado real para ser verdade, com toda a carga paradoxal que isso carrega. A voz, num futebolista, salvando raras excepções de foras de série ou génios intemporais, torna-se, como comprovado, num critério tão válido como a idade ou o número de internacionalizações. Certas correntes defendem mesmo a substituição do sistema AA + Sub-21 pelo de Baixo + Barítono + Soprano. A verdade é que Carlos Miguel regressou ao Brasil no final dessa época sem ter ganho a confiança nem do treinador, nem dos adeptos, nem dos colegas. Nunca pegou no jogo, nunca encheu o campo. A voz, caríssimos, nunca lhe possibilitou impôr o espaço necessário a um número 10 para expôr a sua pleíade de artimanhas. E com estas incontornáveis idiossincrasias, o mundo da bola vai escrevendo a sua história, decepando cruelmente os mais fracos, trazendo Darwin para dentro das quatro linhas, desenhando uma linha de evolução que traz sempre um Punisic depois de um Abdel Ghani, um Fertout depois de um Embé, um Taoufik depois de um Basaúla. Lei da vida, norma da bola.

quarta-feira, dezembro 24, 2003

Caderneta da Bola: um blog com superavit tecnicista a meio-campo. Luvas pretas e suplementos vitamínicos para: caderneta-da-bola@megamail.pt
A Caderneta da Bola deseja uma óptima segunda volta a todos os adeptos da bola deste país e de além mar, especialmente aos mais desfavorecidos, como os adeptos dos históricos Leça FC (último classificado da Zona Norte da II B) e do Farense (penúltimo classificado da Zona Sul da II B). Votos de um Santo Natal e muitas trivelas, pontapés do meio da rua e golos limpos no ano que se avizinha, entre o Euro e o Neuro. Prometemos na chuteirinha uma série de novidades nos próximos dias, que é como quem diz "havemos de meter aqui algum post pelo menos até meados de Março", como o final da História Interminável de Chaves, assim como revisitações a outros plantéis históricos (o muito ansiado Farense, por exemplo), e a autópsia ao monstro (agora defunto) Parmalat, assassinado publica e barbaremente a tiros de Clóvis, Paulo Nunes e Donizette, tanto nos relvados como nas bolsas de valores por esse mundo fora.

segunda-feira, dezembro 01, 2003

Prossegue o jogo no Municipal de Chaves, desta feita com os canticos apontados para Edondo Amaral Neto, o pigmaleao brasileiro que marcou a decada de 90 em Tras os Montes sob o nome de codigo Edinho. Hoje com a provecta idade de 36 anos, Edondo resiste nas sinapses de todo e qualquer apaixonado pelo futebol dada a sua existencia contraditoria. Apesar de parecer esguio, baixo e encurvado, com uma tecnica repentista, ao jeito do italiano Sandro "La Cobra" Tovalieri, saudoso sniper da costa adriatica, numerosos relatos existem de um Edinho alto e possante, mais ao jeito de um belicoso Igor Protti, o Sansao retroescavador de Bari (nota: a Caderneta internacionaliza-se progressivamente, expandindo alem fronteiras a sua 'luta de classe'). Aquilo que concede a Edondo a sua aparencia hibrida, e aquilo que, porventura, tornou Edondo em Edinho, era a sua compleiçao solida, integral, como um so bloco de carne, osso, sangue e golo. A cabeça achatada, os ombros colados ao pescoço, um peito curvaceo e tenso como uma ameaça de bomba, enfim: Edinho, sintese tropical de David e Golias, era um jogador explosivo. FIM DA 1a PARTE

terça-feira, outubro 21, 2003

ROBERTO MATUTE: 3a E ULTIMA PARTE DA SAGA. Em Belem, o regresso as boas exibiçoes. 26 jogos e 8 golos, com os pasteis na Segunda Divisao de Honra, e o possante espanhol, olhos fixos no Tejo, cada vez mais a arrastar o seu poderio fisico pelo relvado. Apesar dos jogos correrem de feiçao e a sua media nao ser de menosprezar, notava-se em Matute um ligeiro aumento de peso e perda de velocidade. O dominio da tecnia da Morte Toraxica continuava intacto, mas Belem pedia mais. Assim, no final da epoca, com o passe na mao, é tempo para mais uma corrida, mais uma viagem. O destino? O Dundee United, lendario clube escoces do feiticeiro tobaguenho Russel Latapy, galardoado com um voto na escolha dos seleccionadores FIFA para melhor jogador do mundo, e sobejamente conhecido pelo sanguinario duelo com Jokanovic e por ter furado as redes de um estadio brasileiro num estagio do FC Porto de final de epoca (momento que o programa Contra Ataque registou para a posteridade, como é seu apanagio). Foi na Escocia que Matute viveu a febre do bug do milenio, alinhando apenas em 5 encontros. Os frios ares da Escocia fizeram dele o ultimo hispanico de renome a alinhar na frente de ataque do clube escoces, ate a chegada de Claudio Cannigia, ja devidamente recuperado do stress pos-traumatico provocado pelo embate com Coroado na Luz (a celebre Batalha dos Cartoes). Depois da Escocia, o regresso a casa e hoje pode dizer-se que Roberto Matute agita o mercado dos escaloes secundarios da Liga Espanhola, tendo recentemente protagonizado uma bombastica transferencia, ao recusar renovar com o Gramenet para assinar pelo Recreacion. Um cidadao do mundo, sempre na vanguarda, ou o ultimo de uma rara estirpe de colossos irredutiveis a tentar mostrar ao mundo que ainda ha espaço para a tecnica da força. Chaves e nos, como sempre, nao esquecemos.

segunda-feira, outubro 20, 2003

Depois de um tackle extremamente agressivo de um jogador magrebino ter transformado a ode a Matute num mero prologo de homenagem (um carrinho ao jeito do saudoso belenense marroquino M'Jid), urge continuar a travessia por esse homem que, tivesse tido arte, engenho e bons conselhos, seria um verdadeiro pichichi na liga de nuestros hermanos. Jogador sintese do poderio animal, Roberto Matute reinnava na area como o leao reina na savana, uma supremacia fisica imperial, qual Cortez a invadir as Americas. Nascido em Agosto de 1972, Roberto Matute Puras começou a dar nas vistas no Logrones, onde os olheiros flavienses o foram descobrir, a ensinar as camadas jovens a matar a bola no peito. "Matar no peito", expressao do futeboles que romanceia a arte de roubar a vida a uma vola veloz, fazendo-a adormecer na caixa toraxica, requer uma mestria acima da media: o gesto simultaneo de levantar a cabeça, calcular a trajectoria da bola, posicionar o tronco, dar-lhe a inclinaçao adequada e depois, encaixar o impacto deixando a redondinha rolar até a ponta da bota nao é facil, mas Matute fazia como quem come uma tapa. Em Chaves, obviamente, titular indiscutivel na temporada de 96-97, passeando numa frente de ataque que conheceria tambem os avançados espanhois Miner e Dani Diaz, para alem do poste romeno Cuc. Nessa temporada, 10 golos em 34 jogos, media assinalavel, em Tras os Montes. Na temporada seguinte, um ligeiro declinio para 26 jogos e 3 golos, perda de rendimento que levaram o tigre catalao a paragens mais a sul, e mais azul. Era tempo de Cruz de Cristo. FIM DA PARTE 2 Nao percam, carissimos leitores, a conclusao da odisseia de Roberto Matute, nos proximos dias!

quarta-feira, outubro 15, 2003

(ponto previo: este post sera escrito com muito poucos acentos, dada a longinqua proveniencia, um lugar onde os teclados sao tao diferentes quanto o estilo de jogo da lusolandia) Arrumado o ponto previo, o Chaves. Os rasgos de exuberancia futebolistica e os excelentes golos de bandeira dos saltimbancos da bola lusa regressam agora à sede dessa paladina missao que é o Tras-os-Montes All Stars da decada de 90. O holofote recai agora sobre o portento catalao Roberto Matute. Apesar de ser um nome que nao necessita de grandes introduçoes, impoe-se a resenha. Impoe-se porque se existiu jogador que personificava a expressao "mata no peito", era Matute. Um pouco à semelhança desse Messias chamado Jesus Seba, futebolista de 24 quilates, garboso bolide de 160 cavalos quando engatado na ala direita, Roberto Matute era tambem ele um genuino produto do animismo futebolistico, esse sentir do futebol como uma religiao primordial, que tranforma os jogadores na expressao pura da divindidade dos animais selvagens. Matute era assim, corajoso como um falcao, indomavel como um puro sangue arabe mas tambem preguiçoso como um reptil herbivoro. FIM DA 1 PARTE

segunda-feira, outubro 13, 2003

A Caderneta da Bola faz hoje uma viagem até à cidade do antigo governador civil, transformado em Presidente da Federação Portuguesa de Futebol, viajando de moliceiro pela Ria de Aveiro, até chegar ao rural Mário Duarte, onde a relva é tão comprida quanto o cabelo do antigo central Dinis. O nosso visado é Aldo António da Costa Soares, conhecido no meio por Simone, que não tem como primeiro nome Marco, nem como apelido De Beauvoir, avançado da classe de 66, angolano de origem, descoberto para as lides da bola pelo mítico treinador dos onze dedos, Álvaro Magalhães, quando treinava o Lusitânia de Lourosa, repleto de figuras do 'triste fado' futebolístico nacional, como o 'veterano' ponta de lança Penteado, que até tinha pouco cabelo ou o defesa Carmindo, dos tempos do Águeda primodivisionário, isto para não falar dos promissores Basílio Almeida e da 'eterna promessa' Marco Stromberg, um extremo que, aos 10 anos, era vedeta dos infantis do 'Glorioso' da Luz. Esta equipa destacou-se na época de 93/94, por ter chegado aos quartos-de-final na prova rainha, eliminada pelo Sporting em Alvalade, depois de ter superado o Belenenses de João Alves, num jogo “bombástico”, numa partida em que a relva parecia ter chegado directamente de Paranhos para substituir a que tinha sido destruída por Mark Knopfler nos seus concertos à grande-jogador-só-que-temos-o-plantel-fechado. De qualquer maneira o Lourosa, foi para essa época aquilo que o Sandinenses viria a ser mais tarde, isto é, uma equipa, vinda do deserto do nada, em busca do Graal, impossível de alcançar, que é o ceptro de Taça, que às tantas, deixa de o ser. Depois de passagens pela terra de Vieira de Carvalho e pela Vila das Aves, o avançado Simone, que não era alto, muito menos loiro, mas era tão tosco como o jogador que deu origem a essa expressão, deu nas vistas na sua segunda época de Lourosa, onde marcou treze golos em vinte e nove jogos, e logo saltou para o Beira-Mar, onde nunca se impôs. É certo que a herança de Dino “Dumbo” era pesadíssima, mas o seu rendimento foi tão baixo, que acabou por ser recambiado para a margem...sul! A Amora era o destino, com José Rachão como técnico e o grande comentador e 'bombista' Manuel de Oliveira, que ao contrário do realizador, cultiva um estilo mais “mexido”. Na Amora, as coisas voltaram a não correr bem, e no final da época o jogador procurou a redenção em Fátima, onde nunca encontrou a luz, neste caso, das balizas contrárias. Mas a explicação até pode ser dada pelo facto de não ter sido orientado em território santo pelo 'mítico' Válter Ferreira, que, para alguns, foi um 'pastorinho' fora do tempo. Quem não se lembra da história dos dólares com a face de António Oliveira? E o carimbo do N'Dinga? Depois de três anos de rasto desconhecido, com passagem pelas divisões inferiores do futebol francês, o regresso deu-se no local mítico da queda do avião de Sá-Carneiro, Camarate, jogando pelas águias locais. Mais uma corrida, mais uma viagem, mais um descalabro! A carreira do jogador estava irremediavelmente destruída, registando ainda uma passagem pelo Barrosas, dos distritais nacionais. Perguntará o caro leitor o que é feito de Simone? Resposta : Está detido, em Paços de Ferreira, por tráfico de droga. A NTV ao reportar uma partida de presidiários, apitada por Paulo Paraty, auxiliado por Carlos Calheiros, sem bigode, num encontro de notáveis, onde não faltou a presença nas bancadas de um antigo presidiário do balneário de Chaves (Major oblige), Vítor Reis, o canal com pronúncia do norte descobriu o jogador, que se mostra arrependido do que fez e disposto, ano e meio depois da detenção, a mudar de vida quando cumprir os cerca de seis anos que ainda o esperam. Resta saber se essa vontade de voltar atrás, não passa por esquecer a carreira de jogador, que, diga-se, teve sempre uns milhares de miligramas a mais.

sábado, setembro 20, 2003

Aqueles que, sensatos, têm acompanhado o Terceiro Anel, constataram (emocionados, por certo) que estes sempre vossos partilham a odisseia historiográfica em duas mãos, uma aqui e outra lá mesmo - http://terceiroanel.blogspot.com . E é com profunda emoção e redobrada motivação que vemos expandir-se a ânsia do conhecimento e o número de pintores desta 'arte geométrica'. Bola para a frente.
O percurso historiográfico pelo Marão começa a revelar-se uma dor de cabeça, tal é a riqueza do plantel. Com efeito, desde os primórdios que a memória é a mais profícua fonte humana de surpresas e acreditem que mergulhar na memória até ao fundo para resgatar o Chaves tem tanto de doce como de conflituoso. Vêm estas linhas tentar justificar o facto de, depois de fechado o capítulo da defesa, e já em plena lavra de meio-campo, regressarmos à rectaguarda para dar conta de uma figura absolutamente imprescindível nos compêndios da bola transmontana. Ponderámos muito, sim, mas chegámos à conclusão que Denis Putnik merecia um memorial. Breve, mas suficientemente simbólico para o recordarmos como um dos esteios dessa agressiva transnacionalidade que tem feito do Municipal de Chaves esse campo de tiro que tão bem conhecemos. Denis Putnik, portentoso defensor, chega a Chaves com o título de campeão croata pelo Hajduk Split, à altura (93/94) com uma autêntica dream team (Milan Rapajic e Ivica Mornar no ataque, Balajic - "trabalho para ser melhor que o Maldini", disse um dia à chegada a Alvalade - e Buturovic - o nemésis de Secretário - na defesa). Alto, forte e espadaúdo, era a sombra onde Manuel Correia era a luz, era o gelo onde N'Dong era o fogo, era o rasto enlameado do atleta adversário. Apesar de apenas 3 jogos na época croata, chegou a Chaves para pegar de estaca e fazer, em duas épocas, cerca de 57 jogos e 3 golos, seguindo depois para... Leça. (é verdade, a Caderneta já lá andou!) Uma descoberta feliz de um dos mui obscuros agentes-fífia que pululam por esse Portugal fora, um homem recto e respeitado pela torcida (fontes bem informadas da Caderneta da Bola poderão vir, no futuro, a contribuir com curta prosa sobre a única claque organizada do Desportivo de Chaves, prestai atenção - ou talvez não), mas ainda assim, um incansável indutor de calafrios. Enfim, depois da curta abordagem aos guarda-redes, quem o pode censurar?

quinta-feira, setembro 18, 2003

Um pequeno interlúdio informativo na travessia blaugrana para uns quantos agradecimentos e umas declarações à imprensa. A Caderneta tem-se apercebido, com algum agrado, de que há cada vez mais adeptos a preencher as bancadas do nosso recinto, qual Estádio Diogo José Gomes nesse Sunday Bloody Sunday em que o Odivelas FC abateu, com um só tiro, o Salgueiros num duelo da Taça de Portugal. Serve a ilustração para registar uma curiosa analogia, entre o acréscimo de público e a emergência dos valores individuais no trato do esférico: tal como a sensacional façanha do modesto Odivelas FC foi meticulosamente orquestrada pelos pés de um homem cujo valor seria reconhecido anos mais tarde por esses relvados fora, Paulo Vida, também na agradecida Caderneta, coincidem os elogios e o aumento de visitas com a emergência dos mitos flavienses e a estreia a titular do virtuoso Rui Malheiro. De resto, o agradecimento às referências elogiosas e às palavras da massa associativa, que entre confusões de identidade e de heroísmos de anonimato (não o era também Kumba Ialá nos seus dois anos de futebol algarvio, afinal?), vai envergando com brio a camisola 12. E já a seguir, prossegue-se no porta-Chaves, com mais umas considerações sobre a escola luso-brasileira de comentarismo desportivo pelo meio. Ripa na rapaqueca.

sexta-feira, setembro 12, 2003

Só que o pior, o pior veio depois. Milinkovic decide abandonar a amada Chaves, rumando até território espanhol, criando um vazio na famosa e mítica posição "10". O filão "ex-jugoslavo" - expressão muito cara aos dirigentes portugueses nos 90's - era a solução desejada e a cassete milagrosa lá chegou às mãos de Álvaro Magalhães que lutava com unhas - ele até tem onze nas mãos - e dentes pela manutenção. Matic. Ivan Matic. O seu nome começado por "M", acabado em "ic", aproximava-o de MilinkovIC, assim como a sua respeitosa envergadura física (1,85/83), pois para "cérebros tarrecos" lá chegaria o tempo do ex-Celta, Carlos Alvarez. O sempre prestável presidente Luis Carneiro até terá mesmo confessado, a propósito da aquisição de Matic, que "este até tem um nome mais fácil de dizer que o outro". A camisola "10" estava entregue então a Ivan Matic, um ex-Hadjuk Split, mas pouco. Pouco? Pois, é que em Split poucos se lembrarão de o ter visto actuar com a camisola mais amada da mui bela cidade croata que viu nascer, em Abril de 1971, tão cerebral rebento. Infelizmente para as cores flavienses, cedo se percebeu que Matic, o Ivan no balneário, estava bem distante do Niko, o marido de uma campeã de basquete jugoslava. Matic até era canhoto, mas desde logo os "índios" flavienses começaram a usar expressões como "este é mais lento que a minha falecida avózinha". Que Deus a tenha em paz e sossego. Matic era defacto lento. Sem velocidade, sem chama e sem talento. Do seu pé esquerdo nem um golo saiu para amostra em duas temporadas e foi-se arrastando lentamente até à dispensa em direcção aos Açores, ao Operário. Mas operariado e Matic realmente não combinavam. Matic nunca foi homem de correr atrás da bola, mas, em abono da verdade, também nunca teve tempo para correr com a bola. Era tudo uma questão de desarme, de pressão e o bom do Matic lá ficava a ver os navios passar. Desconhecemos se terá regressado à sua Croácia de navio, no entanto, sabemos que andou a arrastar-se, pós-Operário, em clubes da dimensão de um NK Posusje e de um NK Marsonia, clube pelo qual - pasme-se! - apontou 4 golos, mas também deixou marcas do seu mau feitio, com alguns cartões vermelhos a serem-lhe exibidos. Esse facto ter-lhe-á valido a dispensa e, segundo o que conseguimos apurar, o bom do Ivan, aos 32 anos, anda a procurar clube. À atenção, é claro, de alguns clubes da 2ªB e 3ª Divisão portuguesas que ainda procurem um estrateg"ic".

terça-feira, setembro 09, 2003

Finda por ora o périplo pela defensiva flaviense, não sem antes uma palavra de apreço a dois homens que em muito contribuíram para o Chaves ser aquilo que é hoje. São eles Patrick - não confundir com o médio Patrick Vaz (rebento de cópula luso-francesa, a outra face, figurativamente falando, claro, de uma moeda boavisteira chamada Quevedo) - e Vinagre. Estes dois jogadores 'eternamente jovens' foram e serão os expoentes da vaga de laterais rápidos que um dia pôs fim ao primado de stoppers fecha-bem-a-ala de fidalgos como Amarildo, por exemplo. Para estes dois, o campo adversário era sempre a descer, como quem desce a serra do Marão de bicicleta, ou como quem aprende a conduzir no IP5, quando vai dar passeios ao Sul. Enfim, como o tempo não existe, também não é a propósito destes dois bravos rapazes que o vamos inventar. Até porque adiante vem o Almirante Toniño, centro-campista e estratega de proa na Invencível Armada Espanhola que em tempos dominou airosa a terra Chaves.
Prosseguindo na flávia odisseia, eis-nos defronte de Parfait N'Dong. Excelso sapador gabonês, este portento é o protótipo do 'homem sem passado'. Nem a companhia, nunca confirmada além dos confins dos cafés do interior e do peão dos estádios secundários, do seu irmão N'Zé N'Dong ajuda a conferir a N'Dong (denominado em diversas sedes como apenas Parfait, numa curiosa acepção francófona do seu estilo de jogo) um carácter familiar, próximo, duradouro no tempo, uma carreira, até uma família, que certamente a terá. 'Homem sem passado' porque mesmo uma aturada busca nos registos cadernéticos é escassa para traçar a Parfait um percurso que vá além de 4 clubes em Portugal, o mais eminente dos quais o nosso GDC. 'Homem sem passado' porque Parfait N'Dong pura e simplesmente apareceu. Não veio de um clube, não granjeou uma fama de qualquer espécie, nada. Apareceu. Talvez fosse boa ideia inquirir os dirigentes do Amora que com ele assinaram contrato, no vetusto ano de 1994. Nessa época, o Shaka Zulu da Retranca alinhou em 21 jogos de camisola azul, manchando o prémio da montanha com uns indisputáveis 11 cartões amarelos e 1 vermelho. Em Novembro de 1995 assina pelo Maia, vergando os ímpetos à insustentável leveza da tutela de Vieira de Carvalho. Os 6 cartões amarelos em 22 jogos são afinal, a prova da brandura crescente. É depois da Maia que o guerreiro chega a Chaves. Em Chaves, caros leitores, Parfait faz 17 jogos em 2 épocas na 1ª Divisão. 9 cartões amarelos, ao todo. 17 jogos e a imortalidade no panteão flaviense aqui erigido? Mas por que carrinho a pés juntos é que alguém se lembra disto? Simples. O Chaves é, como Parfait, um clube cuja história pública é marcada pelo vazio, pelos hiatos. Também o Chaves, como Parfait, parece não existir quando não está no escalão principal ou a jogar contra um grande na Taça de Portugal. Também o Chaves encerra na sua tumba futebolística tesouros e mistérios, fantasistas bipolares como Milinkovic, heróis de pé face aos vendavais da bola como Paulo Alexandre, máquinas goleadoras como Matute. Uma tumba obscura e por resgatar, escondida como o Gabão se esconde atrás de um continente aos olhos portugueses. Parfait, longe de ser perfeito, era um garboso defensor. Um 'homem sem passado' (e cujo futuro foi, depois de Chaves, o Penafiel e depois a penumbra, de novo) não tem nada a perder e N'Dong nunca perdia nada além dos jogos e dos rins, de vez em quando. Um jogador duríssimo, inexpressivo, um toque de bola que a impiedosa escola de comentaristas lusitrastes se habituou a alcunhar de exótico (com toda a carga etnocêntrica que lhe subjaz) e, no entanto, um retrato fiel de toda a história de um clube. Uma história que, mesmo aos olhos dos homens que fazem esse mesmo clube, ele não tem. E no entanto, não é preciso grande esforço para recordar a absoluta e ingénua ausência de medo neste defensor, e perceber rapidamente como, apesar do espécimen ser um jogador vulgar, constituir esse um dos traços mais raros da bola actual.

quarta-feira, agosto 27, 2003

Um interregno na saga do Chaves (estão avisados: o defesa que se segue é Parfait N'Dong) para uma entrada do Dicionário Português-Futebolês há muito em congeminação mas agora tornada imprescindível pela menção num e-mail recebido recentemente. C para "Carregador de Piano". Expressão imortalizada no léxico comentarista mas, de tão rebuscada e ilustrativa, decerto amplamente utilizada em palestras de balneário por esse Portugal fora. Estamos em crer que a expressão remonta ao tempo em que o piano era um instrumento central em qualquer soirée artística digna desse nome. Ainda hoje o solista ou colectivo orquestral conserva os louros da fruição pública, mas cabe ao carregador do piano a árdua tarefa de proporcionar as condições para que a magia aconteça. Por outras palavras, se não fosse o carregador de piano a (passe a redundância) carregar o piano, escada acima, num trabalho de simultânea força, perícia e sobriedade, nunca o artista poderia dar ao mundo um pedaço de si mesmo. Voltando à bola, se não fôr o sapador de meio-campo a recuperar, constante e no limiar da invisibilidade, as bolas posteriormente bombeadas para as alas de onde saiem os cruzamentos ou desmarcações para o número 10 ou para o ponta-de-lança carimbar os corações dos adeptos de glória, poucas vezes todos nós conheceríamos o travo doce da mesma. O "carregador de piano" é assim o centrocampista cuja função maior é estar em todo o lado e carregar a equipa, por assim dizer o piano, para a frente. Este carregar não é só o mero recuperar de bola para lançar a jogada. É também um complexo processo psicológico de potenciar motivação, empolgar os adeptos mas fazê-lo a dançar no paradoxo de não ser, ao mesmo tempo, o centro ou o culminar desse trabalho. O bom "carregador de piano" transporta a equipa recuperando bolas, dobrando companheiros, abrindo espaços à subida do central ou à penetração dos médios ofensivos, lateralizando jogo e, ao mesmo tempo, incentivando, gesticulando, filtrando no campo as orientações tácticas vociferadas no banco. Está claro que, dada a multiplicidade de funções e o requisito de qualidade e ubiquidade, a existência de "carregadores de piano" rareia no futebol luso de hoje em dia. Tanto que a própria expressão tem vindo a ser gradualmente ofuscada por outras de significado similar mas de alcance e profundidade claramente inferior, como é o caso de "jogador box-to-box" (e aqui, Gabriel Alves e a escola Sport TV assumem particular preponderância, num movimento de contornos quase escolásticos contra o monopólio vocabolar e aforístico da rádio). A qualidade e o estatuto do "carregador de piano" também dependem do colectivo em que o jogador joga. Nos grandes, algumas referências por demais evidentes são os casos de Semedo e Douglas, no FCP e SCP, respectivamente, mas outros ilustram com maior amplitude a formulação idiomática, casos de Bobó no Boavista (o tal jogador citado no e-mail recebido) ou N'Dinga no Vitória de Guimarães. Ambos exemplos de uma força inexcedível, de um carisma intocável, de uma técnica que, não sendo basta, bastou, isso sim, para passar a bola, em boas condições e com todo o fulgar, a outros mais dotados, como Timofte no Bessa ou o tunisino Ziad, o astro magrebino da cidade-berço, o Ali Babá das 40 Assistências. A emergência deste tipo de figuras no futebol português (e, sobretudo, na leitura comentada do futebol português) deve-se, a nosso ver, a dois factores: o primeiro é o facto de nunca ter sido desenvolvido de um modo próprio cá no burgo o estilo de jogo cunhado na Holanda por Rinus Michels, o 'futebol total', em que todo o jogador estaria virtualmente preparado para ocupar qualquer posição no terreno, apesar de especializado na sua posição específica. A dicotomia entre a técnica e a força (sempre ela, uma vez mais) segregou, durante largos anos, os tecnicistas dos jogadores duros, sendo o "carregador de piano" uma espécie de mediador diplomático entre as duas facções, responsável, em boa medida, pela paz na relva e glória nas balizas. O segundo factor é a propensão nativa para a produção de anti-heróis na sombra dos ídolos, plastificados e nascidos já em apogeu e com pés de barro prontos a partir. O goleador da bola é idolatrado e exige-lhe-se, por assim dizer, o circo. Ao "carregador de piano" exige-se o pão, e a ele devolve-se o respeito. Daí o segundo nunca cair em desgraça, daí ser ele escassas vezes apontado como o responsável pelo falhanço da sinfonia. Fazendo a ponte com o Chaves, e reforçando a tese do post anterior, Toniño era um homem assim.

quarta-feira, agosto 13, 2003

Um pequeno parêntesis à laia de glossário: o catenaccio transmontano. Desenho táctico desenvolvido por António Jesus e continuado depois pelo trainador-comentarista Vítor Manuel, assenta, até ao meio campo ofensivo, numa formação com dois laterais rápidos, dois centrais de marcação, um líbero a marcar à zona que também sobe para trinco, e ainda um outro trinco que subia no contra-ataque. Esta última era a posição ocupada pelo mítico centrocampista castelhano Toniño, homem de palavras brandas e pontapé fortíssimo. Caríssimos, se algum dia lerem que Toniño era número 10, fazei, por favor, orelhas moucas a tais ignomínias. Havemos de chegar a Toniño e dealbar toda esta historieta, esta advertência prévia é só para os mais incautos. Acrescente-se que, tanto era assim, que o substituto de Toniño no Chaves, o também espanhol Carlos Alvarez, já tinha um estilo de jogo cuja adequação a este lugar táctico não deixa margem para dúvidas (vide trabalho posterior do mesmo no Vitória de Guimarães).
Depois de Manuel Correia, a senda dos históricos Defensores de Chaves prossegue até Paulo Alexandre. Esta natural de Vilarelho da Raia, onde nasceu em 1970, joga no Desportivo de Chaves (dizemos joga porque alinhou ainda esta época que findou em Junho, e com a braçadeira de capitão) desde – abrir a boca de espanto, por favor – 1983, com apenas uma época de interregno (99-00), em que alinhou pelo Desportivo das Aves. Caso para dizer que, em 20 anos de carreira futebolística, o grande Paulo Alexandre, apenas deixou cair o “Ch” durante um deles. Afinal, até o clube no qual resolveu desanuviar do Marão se chama Desportivo e acaba em Aves. Adiante. Em 1983 começa a jogar nos iniciados, fazendo a sua primeira época de sénior em 1989-1990. Os anos 80 foram portanto passados na pardacenta cidade transmontana a jogar na cantera chavista. Definimo-lo anteriormente como um central que gosta de subir e marcar uns golos. Há que explicitar melhor esta afirmação. Na realidade, ao longo destes anos, Paulo Alexandre não marcou, pelo Chaves, mais do que 10 golos. No entanto, e tendo em conta que é jogador e defesa do Desportivo de Chaves, essa meta chega para caracterizá-lo como um central que marca alguns golos. Até porque, um dos pontos fortes deste jogador, mais ainda do que a característica “saber sair a jogar” (tanto quanto é possível no catenaccio transmontano) era o jogo aéreo. No rigor dos conceitos, Paulo Alexandre tanto era exímio no cabeceamento como no ocasional alheamento completo do fluir do jogo e consequente criação de espaços vazios à mercê do intruso adversário (uma postura, por si mesma, aérea, uma vez mais). As estatísticas, no entanto, falam por si: de 1990 a 2001, nunca menos de 17 jogos por época. Seja a companhia Manuel Correia, Amarildo, Carvalhal, Parfait N’Dong, Correia, Luisão, Auri ou Jorge Neves (para citar apenas alguns), Paulo Alexandre estava lá, a segurar e a marcar, como central de marcação que era e é, o ponta de lança adversário. As crónicas descrevem-no como sólido, um jogador com personalidade. Numa comparação aparentemente algo desfasada, imaginem, os que não o recordam, um Helguera arraçado de Jorge Soares. Algures, no mesclar de memórias futebolísticas, encontrarão o vosso, que também é nosso, homem. Agora, vira o jogo.

segunda-feira, agosto 11, 2003

Antes de falar dos defesas do Barça do Marão, uma palavra de solidariedade a esses esmerados operários, pelos durí­ssimos momentos em que, antes da partida, o treinador anunciava qual o guarda-redes que a pandilha ia ter atrás de si. Imaginamos os suores frios de Amarildo, as temporas latejantes de Paulo Alexandre ou os tremores contínuos nos joelhos do jovem Vinagre. E o perverso desta situação é que, durante algum tempo, o treinador dos flavienses foi, ironicamente, um ex-guarda-redes do Chaves, o tutelar e já mí­tico António Jesus. Depois do gesto de solidariedade, o abraço sentido, não podemos senão continuar, e continuar num caminho espinhoso que nos obrigarão a alguns comentários menos bonitos sobre a zaga transmontana. Já aqui falámos do catenaccio transmontano. Pode pensar-se, a partir desta expressão, que Chaves foi, duravelmente, um feudo impenetrável de defesas rudes, grosseiros no trato e no expôr do futebol, agressivos e de uma violência quase patológica na lida com o adversário. Não. É certo que vestiram aquela camisola, alguns exemplares dessa espécie, como é o caso de Luisão, o brasileiro que foi infeliz protagonista de momentos quase criminais, ou mesmo o central ex-Guimarães Auri, remanescente de uma época de ouro em que, na cidade-berço, pululavam senhores de um futebol monstruoso como Márcio Theodoro ou Arley (este íltimo um interessantí­ssimo case-study forense). Em Chaves, não era tanto assim. Aliás, a 'linha recuada' (mais um termo do futebolês que será tratado a seu tempo) flaviense sempre aliou o central cerebral (caso de Manuel Correia, o eterno capitão), o defesa central que gosta de subir e chega a marcar uns golos (caso de Paulo Alexandre), o central sombra de marcação, violento (caso de Parfait N'Dong ou o, hoje treinador esperança, ontem stopper de respeito, Carlos Carvalhal) e também o central rápido e razoavelmente móvel ao longo de toda a linha defensiva (caso de Amarildo). Comum a todos eles, um denominador: a raça. Todos eles eram jogadores raçudos. Essa coisa do saber jogar à  bola deve ser entregue a quem joga mais à  frente, terão pensado os responsáveis flavienses. Destes vários nomes, destacam-se Manuel Correia, Paulo Alexandre e Parfait N'Dong. Manuel Correia é, sem dúvida, a referência maior. A este nativo do Seixal não pode assentar outro epí­teto que não o de patrão da defesa transmontana. Atentem: de 1989 a 1996, ano em que arrumou as chuteiras, fez mais de 250 jogos com a camisola do Desportivo de Chaves. Foram 7 anos de temporadas consecutivas acima dos 30 jogos por época e, numa equipa periclitante entre a 1a e a 2a, quantos cartões vermelhos, perguntam vocês? Um, e apenas um, e podemos afiançar que o primeiro amarelo nesse jogo foi mal mostrado ("não houve contacto!!"). Um defesa cerebral (prova disso é o bigode, sólido sem ser pesado, cuidado sem ser obsessivo), com um sentido posicional absolutamente assombroso, impressionando, por vezes, com uma invulgar capacidade de recriar a ubiquidade no relvado. Era, além disso, o pedagogo, o mestre em quem os novos bebiam referências sobre como estar e fazer jogar no Municipal de Chaves. E é, por fim, curioso, que tanta experiência tenha sido ganha numa carreira em que passou por tão poucos clubes desde os iniciados, a saber, o Seixal, o Sporting (como juvenil), o Elvas, o Vizela e o Penafiel, até chegar em 1989 a Chaves. Nunca deu o salto para um grande injustamente, ainda para mais se atendermos a equí­vocos como Lula ou o central Marcos, por exemplo. Manuel Correia grava o nome numa outra dimensão, a do bom futebol obscuro e sobrevivente apenas nos cadernos e nas congeminações dos mais atentos. Vale a pena relembrá-lo.
Importa aqui dizer que esta abordagem ao Desportivo de Chaves refere-se, sobretudo, aos anos que vão de 94 a 98, a Idade de Ouro do futebol do Marão, essa época de pendor quase renascentista nessa cidade Condal à beira-Espanha plantada. E nesses anos, Bastón não guardou para si o título exclusivo de guarda-redes bigger than life. Há outros dois nomes que importa recuperar. É curioso reparar que neste lote de três guarda-redes, registamos uma espécie de reflexo de três escolas futebolísticas, as que têm marcado mais decisivamente a história do desportivo de chaves. Um espanhol, Bastón, um balcânico, Poleksic, e um português, Luís Vasco. Os mais atentos dirão "sim, mas «e a escola africana?!»". É verdade, concordamos. Não ignorar o peso desse paradigma futebolístico que trouxe a Trás-os-Montes esse diamante negro chamado N'Tsunda ou os impiedosos irmãos gaboneses Parfait e N'Zé N'Dong, citando apenas alguns. Ou mesmo os brasileiros, em que o expoente máximo é esse homem sem pescoço que um dia foi engatado por Sousa Cintra, Edinho. Voltando às redes, cada qual representa algo de muito específico na história do Chaves. O que vale é que nós aqui não damos respostas, levantamos sim à História as questões que interessam. Adiante. Luís Vasco. O protótipo do 3ª guarda-redes, essa raça maldita de sujeitos que, vivendo e abastecendo-se da experiência profissional da alta-roda do desporto, não ganham nem mediatismo nem progressão de carreira, nem tão-pouco aquela notoriedade que permite depois fazer escola no comentarismo ou na restauração. Homem grande e anguloso mas de ternos caracóis castanhos, também veio provar que um guarda-redes precisa de mais do que ser alto, forte e espadaúdo para vingar. Jogou no Sporting (onde não conseguiu tirar a titularidade a Zoran Lemajic por mais de 10 jogos, o que já diz bastante, tanto de si como do Sporting daqueles tempos) e no Estrela da Amadora, cujas balizas, depois do belga Guy Hubart e Vital, nunca mais foram as mesmas. De seguida, Dragoslav Poleksic. Atentem, caríssimos, no padrão. De onde veio Poleksic? Da Segunda Divisão jugoslava, mais propriamente do Hadjuk Kula. Palpite: ou há empresário obscuro à mistura, ou o director desportivo do GDC tem uma casinha de campo e um par de bisavôs à beira do Adriático. Poleksic, hoje com 34 anos, fez 8 jogos, mal repartidos por 2 épocas, até rumar a Campo Maior, onde fez 31 jogos em 3 épocas de 1ª divisão. Pouco mais terá retirado da sua experiência no futebol luso do que umas tardes à volta da sericaia, o café delta, e um português mais perfeito do que o de muitos nativos. Da sua aptidão para a bola, uma vez mais, não reza a história. Alto, tosco e bonacheirão, não era líder nem carrasco, não enterrava nem deixava de sofrer. Pouco mais há a dizer, na linha desse interessante paradoxo que vai marcando a genealogia do futebol português: tanto jogador, tanta diversidade, tão pouco espectáculo. Perdoem-nos a amargura, não é todos os dias que tropeçamos num Jorge Plácido ou num Caccioli.
O Grupo Desportivo de Chaves, essa agremiação recôndita que encanta o mundo a partir das profundezas da serra do Marão, é um manancial quase inesgotável de histórias e episódios e factóides. A convulsão desportiva e as consecutivas condenações e salvações in extremis espelham toda uma maneira colectiva de lidar com o sucesso no Portugal profundo. A torrente de contratações na exploração desalmada do futebol de leste, a busca da quimera do outro distante, aliada ao fascínio da liga espanhola. O relvado maltratado e a imagem do semi-amadorismo aliada ao fantástico equipamento blaugrana, projectando Trás-os-Montes como Catalunha. E, claro, aquilo que nos traz: os intérpretes de tantas e magníficas sinfonias tanto do mais puro contra-ataque de midtable como do salutar catenaccio transmontano, essa feijoada de cartões amarelos, lesões no menisco e outras inventadas para segurar o zero-zero. E que intérpretes, desde o mais solícito 'carregador de piano' (termo a abordar breve e futuramente na categoria do Dicionário Português-Futebolês) até ao mais excelso e ímpar solista vagabundo. Comecemos pelo princípio. No princípio está a baliza. E na baliza, obviamente, está Bastón. Bastón, oriundo de terras de Leão e Castela, chegou a um Chaves recém-promovido na época de 94-95, vindo do Rugby de Burgos, um clube obscuro com ligações universitárias. Tendo ganho rapidamente a notoriedade, ganhou também a discussão existencial que muitos adeptos foram travando na introspecção dos seus lares, estabelecendo o axioma: sim, é possível ser completamente inapto para desempenhar o papel de guarda-redes e, mesmo num plantel que conta com mais dois, jogar quase a época inteira num campeonato profissional europeu. Mas não sejamos demasiado duros: a verdade é que Bastón, não bastando já chamar-se Bastón, deixou uma simpática villa castillana com historial académico para se estabelecer em Chaves e discutir a titularidade com Silvino (ex-Famalicão, notabilizado nas artes do goleiro, apesar do seu 1,72m e 66 kgs, ao serviço do 'hoje e sempre' Sporting de Espinho) e com Orlando (de quem não rezam grandes crónicas flavienses, como aliás acontece geralmente com os 3os guarda-redes). E também é verdade que chegou a fazer algumas boas exibições com a camisola do GDC vestida. Porém, a lentidão nas saídas da baliza, uma atroz falta de intuição e colocação nos cruzamentos e uma insegurança quase neurótica nos remates de longe, fizeram dele uma lenda dos aviários futebolísticos. Mantém o risco ao lado e tira uma licenciatura, Chaves não é para ti, Bastón.
Agora sim. O centrocampista levanta a cabeça com a redondinha colada ao pé direito. Dá dois... três passos... não mais. Percorre o relvado com os olhos numa diagonal à procura do jovem avançado a desmarcar toda a uma carreira de sucesso na europa para marcar o golo. Não. Continua a correr, passa por um. O jovem avançado que espere. Tem do outro lado o velho companheiro da 2ª divisão a abrir a linha para o passe a rasgar. Não. Tem mais um defesa pela frente e, a três palmos, a linha limite da grande área. O jovem avançado grita mas o ruído, o som das bancadas, é uma massa imperceptível. É o ponto de não retorno. Pontapé-canhão. Já está: senhoras e senhores, o Grupo Desportivo de Chaves, o golo de bandeira com mais anos do futebol português.

quinta-feira, julho 31, 2003

Com meia Caderneta ainda em treino condicionado (impedida portanto de alinhar com o onze titular na mui ansiada deslocação a Chaves), avança-se aqui para um singelo naco de prosa em honra de um dos melhores centrocampistas portugueses de todos os tempos. Atenção: não é laracha, é um memorial à carreira de um dos mais virtuosos artistas por quem a relva portuguesa teve o deleite de ser pisada. Trata-se, objectivamente, de um futebolista de craveira internacional e, sem qualquer sombra de dúvidas, de um homem que na Caderneta ocupa um dos lugares cimeiros no ranking das preferências. Jorge Plácido. A pouco menos de um ano de completar 40 aniversários, merece as nossas palavras por vários motivos. Primeiro, a qualidade estelar do seu futebol. A fineza no trato, a raça na abordagem, o arquétipo do número 10, uma vez mais (e perdoem-nos a queda para este tipo de atletas) um artista polivalente e multi-instrumentista. Segundo, o palmarés impressionante para um astro tanto capaz de vencer uma Supertaça europeia ao serviço do Futebol Clube do Porto como carregar o Salgueiros às costas na heróica eliminatória da Taça UEFA de 90-91 contra o Cannes. Literalmente um franco-atirador em várias frentes, mas já lá vamos. Agora os factos: nasce em Luanda, começa a carreira no Barreirense, continua na margem sul ao serviço do Amora e, depois, do Vitória de Setúbal quando, em 86-87, emigra para Chaves (vêem como o GDC está sempre presente?). Em Chaves, alinha provavelmente no melhor plantel de sempre do clube, onde é o maestro por trás dos solistas sangrentos Jorge Silva e Rady, numa cruzada que termina no 5º posto e no acesso à Taça UEFA. Acabado de rotular como uma jogador interessantíssimo e a seguir atentamente, ingressa, fruto da excelente prestação transmontana, no Futebol Clube do Porto, em 87-88. Cremos aqui que esta época dispensa comentários, no que concerne à prestação dos azuis e brancos. Faça-se, isso sim, a vénia a Jorge Bravo Plácido. No início da época seguinte ainda arranja tempo de fazer uma perninha na Supertaça Europeia contra o Ajax, que vence, e segue depois Artur Jorge para o já extinto Matra Racing, esse funesto cabaret da bola parisiense, de existência fugaz mas intensa. No Matra, Plácido faz dois jogos mas prossegue para época seguinte, podendo orgulhar-se de alinhar num clube que mudou de nome durante a sua estadia. O Matra, na viragem dos 80 para os 90 (miserável efeméride, essa), passa a chamar-se Racing Paris I, mudando também o nosso homem para o "suplente que agora alinha quase a época toda e, apesar de não levar o clube além do 19º lugar da liga francesa, condu-lo bravamente à final da Taça". No final desse ano, regressa à casa das Antas onde o seu futebol é incompreendido e desrespeitado, apesar de contribuir para a vitória na Taça de Portugal. Não contente com isso, mas sofrendo de uma inexpugnável ligação à Invicta, ingressa no Salgueiros onde torna a ser o Hamlet dessa enorme tragédia chamada futebol português. É nesse ano que o Salgueiros, na sua primeira participação na Taça UEFA, consegue vencer o jogo da primeira mão frente ao Cannes numa excelente partida iluminada pelo génio de Plácido, autor do único golo, e quase passa a eliminatória, não fosse um golo de Oman-Biyik (internacional camaronês e mundialista em 90) aos 85 minutos e a malapata na lotaria dos penalties. Registe-se que o feito do Salgueiros foi apenas ofuscado por uma colossal eliminação do Inter de Milão pelo Boavista, com uma eliminatória garantida na primeira mão por um 2-1 de Marlon Brandão e Pedro Barny. Enfim, Jorge Plácido fica mais uma época no Salgueiros onde continua a brilhar, embora um pouco abaixo da temporada transacta e, em 93, parte de novo rumo à France para jogar no Créteil. No Créteil fica uma época até viajar, encore par l'autoroute, até aos arrabaldes da Cidade Luz. O destino era os Lusitanos de Saint-Maur, à altura uma desconhecida equipa de emigrantes saudosos da bola lusa (com tudo o que isso tem de tenebroso). Entre 94 e 97, altura do primeiro período Saint-Mauriano de Plácido, o clube passa de um grupito de solteiros e casados com sotaque entre o français e o minhoto que joga nos (equivalentes a) distritais a clube irredutível capitaneado pelo craque campeão europeu que já anda ali entre os distritais e (equivalente a) terceira divisão. Segue-se uma curta paragem de uma época no Saint-Denis-Sains-Leû e o regresso, logo de seguida, aos Lusitanos em 1998, onde alinha até ascender ao posto de treinador principal em 2000. Note-se que por esta altura, ou kuíca [ver significado do termo num post de glossário por ora em arquivos cadernéticos] um pouco mais tarde, que os Lusitanos cometeram a proeza de chegar aos quartos de final da Taça Francesa onde defrontaram com brio o Bordéus. Como cereja no topo do bolo, falta acrescentar que este sacerdote das jogadas sagradas vestiu a camisola das quinas por 3 ocasiões tendo facturado 2 golos com a mesma no corpo. Reverência, caríssimos, reverência. Não se trata de um qualquer parodiante de alma vendida ao diabo na encruzilhada do defeso, não se trata de um pantomineiro que promete mais do que dá, antes de um Homem cuja quimera era a auto-superação, o atingir do inominável (vide Chaves na Taça UEFA, por exemplo). Sem a tentação da carne ou das liras ou das libras ou das pesetas, o sucesso, isso sim, trazido a quem nunca o tinha conhecido, a partilha honesta da magia com quem até ali vivia no mundo enfadonho e obscurantista da bola sem cor. Ao leitor ou leitora que acaba de ler este post tomando-o por uma ode a Jorge Plácido, desengane-se: Jorge Plácido é ele, sim, uma ode a si, amante de futebol.

quarta-feira, julho 30, 2003

A Caderneta da Bola investiu no estádio e agora os espectadores passam a contar com um sistema de comentários para uso e desfruto desenfreado. Quem aprecia, ama e, sobretudo, respeita a boa bola sabe que um bom desafio não passa sem o salto na cadeira e o vociferar de espanto, êxtase ou desgosto. Foi a pensar nisso que instalámos o aparelho.

sábado, julho 26, 2003

Caríssimos leitores, Em altura de extrema azáfama para o duo caderneto, é com algum pesar que anunciamos que ainda não é neste post que começamos a discorrer torrencialmente sobre a bola do Marão. No entanto, e porque temos um compromisso com a história, inauguramos aqui mais uma secção temática, Os Misters Preferem os Loiros. Como já devem ter calculado, não existe outro homem mais capaz de encabeçar esta secção do que Vlado Bozinovsky, o australiano que um dia chegou a Aveiro para mostrar que os australianos não só sabiam jogar à  bola como também manter um couro cabeludo em óptimo estado para a alta competição. Parece que através das linhas vos conseguimos ler os pensamentos a fervilhar: "de certeza que o nome está bem escrito?". A verdade é que nos faz falta um José Nicolau de Melo, conhecido por questionar os jogadores sobre a pronúncia nativa dos seus nomes (revolucionando a fonética da bola com a transformação de Drulovic em 'Drulóvich' ou Zahovic em 'Zahóvich'), para resolver essa dúvida, pelo que adoptamos Bozinovsky e não Bozinosky, como muitos se recordarão de ter lido na imprensa desportiva. É também curioso que em Aveiro desemboquem tantos saltimbancos intercontinentais, desde o faraó Magdi Abdelghani até este australiano, ou, mais recentemente, o ídolo senegalês Fary Faye. Este facto ainda carece de explicação. Falemos então de Vlado Bozinovsky. Nascido em 1964, espalhou o perfume do seu futebol (e do seu amaciador) pelo South Melbourne, onde deu os primeiros passos. Estava visto que a colónia penal anglófona não era suficientemente grande para o quilate deste médio polivalente, com apetência para o ataque e óptimo tiro de meia distância. Vai daí, não é de espantar o seu percurso por terras jugoslavas, onde apurou ainda mais esse jeito vagamente latino de vagabundear pelas alas e envolver-se em tabelinhas vistosas pelo centro, alinhando no Dínamo de Zagreb, clube do país onde nasceu, a Jugoslávia. É claro que o Dínamo, num país dividido entre as equipas de Belgrado, o colossal e inspirador Estrela Vermelha e o Partizan, não oferecia aos bons jogadores um bom espaço de projecção para o futebol internacional. No entanto, Vlado não foi lá muito esperto já que o futebol belga, para onde transitou, não era muito melhor. É certo que estamos num tempo, no final da década de 80, em que este vivia ainda à sombra dos feitiços dos alquimistas Vicenzo Scifo e Bruno Versavel, mas o Club Brugge continuava e continua hoje a ser um clube pouco acima da mediania. Discreto em terra de boa cerveja, uma vez mais se torna complicado compreender a opção Beira-Mar. É por aqui que podemos começar a traçar Bozinovsky como um jogador inconstante, sofrendo a qualidade do seu futebol com essa periclitância, essa incapacidade de criar raízes. Bozinovsky, nascido na Jugoslávia, feito futebolista na Austrália, regressado a uma terra transfigurada, emigrado na Bélgica, refugiado em Aveiro, é assim produto da bola apátrida e trituradora, de um mundo desmembrado e criminoso que ataca os calcanhares dos artistas a golpes de rescisões e truques mediáticos. Em Aveiro, no entanto, arranca para uma grande época. Faz 32 jogos, pega na equipa, assumindo-se tanto como ministro, no planificar eficiente dos ataques, como operário, a fechar nas alas e a dobrar os companheiros no segundo terço do terreno. A inconsistência do seu futebol, porém suficiente para um clube como o Beira-Mar, não impede a transferência para o Sporting, em 91, alinhando de verde e branco na época da histórica campanha da UEFA em que o Sporting foi trucidando adversários até claudicar estoicamente frente ao Inter de Milão nas meias-finais. Um plantel onde tinha como companheiros jogadores como o gaúcho Douglas (trinco cerebral mas duríssimo), Oceano, Carlos Xavier e a promessa Filipe (um jogador eternamente jovem, de magnífica visão de jogo, que poucos anos depois viria a abandonar o futebol com uma série terrível de lesões graves), entre outros. Ainda assim, perante este naipe de centrocampistas, Bozinovsky teve poucas oportunidades para brilhar, fazendo no entanto bons jogos na Taça UEFA. No campeonato, alinhou apenas 11 vezes, pelo que no final dessa mesma época regressou a Aveiro, clube de onde viria a sair um ano mais tarde para ir para o Ipswitch Town, de Bontcho Guentchev. Porém, também em Inglaterra, já no seu quinto país futebolístico, o australiano não viria a ser feliz, jogando muito pouco. É por isso que, em 93-94, regressa a Portugal para jogar no Paços de Ferreira onde, como titular indiscutível ao longo da época, vê o clube dos móveis afundar-se e descer à Segunda de Honra. Aí ficou mais uma época, alinhando no escalão secundário, para no ano seguinte regressar à  Primeira Divisão, com a camisola do Felgueiras, carimbando o livro de ouro do clube naquelas três ou quatro épocas em que essa terra viu crescer Sérgio Conceição e os tobaguenhos Clint e Lewis e o brasileiro Ronaldo. Em Felgueiras também jogou a maior parte da época, não conjugando todavia a assiduidade com a regularidade exibicional. Depois de Felgueiras, a Turquia, no Ankaraguçu, e depois de um ano na Turquia, duas épocas douradas (no cabelo e na carteira) ao serviço do Tanjong Pagar, clube de Singapura. Por esta altura, já Vlado se podia orgulhar de ter alinhado em 7 países e 3 continentes diferentes (ou 4, se não metermos os Turcos na Europa). Senhor de um futebol altamente turístico e vistoso, Bozinovsky conquista o coração dos adeptos asiáticos e protagoniza, em 1999, uma sensacional transferência para outro dos grandes de Singapura, o Home United FC. Depois disso, o ocaso, o eclipse da ribalta da bola. Pode ser que Vlado, hoje com 39 anos, continue a encantar plateias indochinesas como já fazia aos 36 anos. Ou pode finalmente ter posto de lado a mala de cartão e assentado arraiais em África ou na América, continentes ainda por descobrir ao ícone futebolístico da globalização. A verdade é que, passeatas aparte, também o seu futebol derivada, não tendo passado dos bons pormenores e do estatuto de "bom jogador mas com muito a provar, ainda". Aquela centelha que separa um Alex de um Ricky (numa comparação boavisteira). A abertura de possibilidades e a fluidez do mercado podem ter, como se vê, tanto de bom como mais ainda de mau, tendo criado em Bozinovsky um fracturante crise de identidade que terão conspuracado irreversivelmente a pureza do seu futebol. Mesmo assim, jogou regularmente, salvo uma ou outra excepção, nos clubes onde foi alinhando, o que só prova que mesmo o futebol impuro ganha, com um cuidado e tratamento diário do escalpe capilar e umas madeixas ou nuances duas ou três vezes por semestre. Afinal, o seu futebol teve momentos esplêndidos e é também por isso que muitos misters continuam a preferir os loiros.

terça-feira, julho 22, 2003

ÚLTIMA HORA: Após um forcing negocial, a Caderneta da Bola SAD vem por este meio comunicar que chegaram a bom termo as negociações com o astro da bola escrita, falada e comentada Rui Malheiro, o regista do Terceiro Anel ( http://terceiroanel.blogspot.com ). Quando os craques são pessoas sérias, idóneas e interessadas, não é difícil chegar a acordo e as verbas são relegadas para segundo plano, pelo amor à camisola futebolístico-historiográfica. Ganham os adeptos, ganham o futebol, ganhamos, enfim, nós todos. Palpitamos a escolha da camisola 11, em homenagem a Pedro Miguel, e os golos surgirão no final de Agosto, depois de umas merecidas férias, juntando-se nessa altura ao restante plantel. É claro - e esta informação não pode também passar ao lado de quem lê - que toda a grande transferência (com franqueza, perante isto, custa-nos a compreender o frisson em torno de Ricardo...) envolve contrapartidas, neste caso bastante interessantes. Haverá mais novidades do defeso nos próximos dias, pois o momento, nos plantéis coesos, é de planificação serena da época que aí vem.

sábado, julho 19, 2003

Caderneta da Bola: contra a pubalgia e as lesões no menisco. Golos de letra para: caderneta-da-bola@megamail.pt
Temos recebido uma quantidade assinalável de correio de leitores. Agradecemos os elogios e registamos as referências. Recordamos o surgimento do Futeblog Total ( http://futeblog-total.blogspot.com ) e do Adepto de Bancada ( http://adepto-de-bancada.blogspot.com ) e agradecemos todas as sugestões, que serão sujeitas a rastreio consoante as prioridades editoriais. O Vitória de Guimarães é um manancial interessante mas, frisamos, as próximas aventuras serão José Eduardo, o comentador, e o Desportivo de Chaves. Na próxima semana, metade da Caderneta estará a vistoriar as obras dos estádios do Euro e a outra metade não estará a vistoriar as obras dos estádios do Euro, pelo que será complicado produzir ao ritmo alucinante a que os leitores se têm habituado. Será, no entanto, um quase-silêncio de pouca dura.
ÚLTIMA HORA: A Caderneta da Bola, neste altura de defeso, é um clube sempre atento ao mercado de transferências e a quem todos os bons jogadores interessam. Por isso, e perante insistentes rumores surgidos nos mentideros da bola escrita, vem por este meio assumir publicamente o seu interesse na contratação do mais promissor falador de futebol a actuar, neste momento, em Portugal. Trata-se, como já adivinharam, de Rui Malheiro, um jovem com cartel e provas dadas no futebol português e com quem a Caderneta gostaria de contar para uma colaboração regular e de cariz estritamente historiográfico, um pouco à semelhança da escola táctica que o próprio já tem vindo a desenvolver na secção 'Recordar é Viver' do incontornável Terceiro Anel. Dizemo-lo publicamente e antes de contactos com o empresário porque não tememos a concorrência: temos camisolas feitas, só falta escolheres o número, e um contrato de 3 épocas à espera. Qualquer oferta superior, nós cobrimos. Seguimos para estágio brevemente e o campeonato está à porta. Que nos dizes?
Quanto aos ajudantes da armada, temos em Beto, Carlos Alberto Santana de seu nome, um contra-almirante de respeito. Com uma compleição física que o capacita tanto para a bola, como para a estiva como para a porta de uma discoteca na 24 de Julho, pulverizou a concorrência ao marcar 16 golos na época de 92-93, o glorioso ano da subida. Carioca, era um avançado fortíssimo, que corria e rompia defesas dentro e fazendo sobejo uso do seu remate fácil e poderoso. Proveniente do América do Rio de Janeiro, esteve 5 anos no União, ao longo dos quais marcou 39 golos. Depois do União, seguiu-se uma experiência em Espinho, na esteira de pontas-de-lança memoráveis como Bolinhas (a quem tiver a arte, que lhe dê voz, ou nós próprios o faremos em tempo certo) ou Artur Jorge Vicente. Já Manú é outra conversa. Também brasileiro mas de Brasília, este dianteiro fazia da classe e do jogo de anca o seu ponto forte, impecavelmente penteado e senhor de um futebol melodioso, espraiou o tropicalismo ao longo de 4 temporadas e 24 golos, tendo seguido depois para o Chaves (está para breve, a resenha), Espinho (de novo o Espinho, hoje e sempre), Académica de Viseu e Imortal de Albufeira. De notar que se trata de um jogador temperamental e com personalidade, pelo que o respeito que ganhou, granjeou-o muitas vezes à custa de um ou outro vermelho e uns quantos amarelos. Bem sabemos que hoje em dia pouca diferença faz, mas falamos aqui de um tempo e de um lugar onde a ética e o savoir-faire ainda vinham no dicionário. Ou não fosse um pastor o capitão.
Existe, no futebol, uma série de verdade tidas como absolutas, isto é, consensuais desde os relvados até às cabines dos relatores, desde os jornais aos Donos da Bola. Falamos de afirmações como "Geraldão marcava muita bem livres directos" ou "o Porfírio, se tivesse cabeça, podia ter sido um grande jogador". Lugares comuns, enfim. Um desses, aliás de dimensão internacional, é o incontroverso postulado "os jugoslavos são os brasileiros da Europa". Para se compreender melhor o União da Madeira, o clube cuja missão é precisamente provar cientificamente esta tese, temos de a ter em conta aprofundadamente. A urdidura estratégica absolutamente prodigiosa dos gialloblui do Funchal pode resumir-se num raciocínio silogístico de razoável complexidade: brasil = bom futebol; jugoslavos = brasileiros da europa = bom futebol; brasilileiros + jugoslavos = bom futebol; (comprar) brasileiros + (comprar) jugoslavos = (comprar) bom futebol. Se tomarmos 'comprar' como prerrogativa da acção 'jogar', temos o resultado final: (comprar) brasileiros + (comprar) jugoslavos = (jogar) bom futebol. Tem tudo para dar certo. Aparentemente. Sem grandes delongas neste preâmbulo teórico, porque não é este o objectivo do post, podem apontar-se, assim de repente, duas falácias nos planos dos patos bravos da bola madeirense: a falácia da 'falsa totalidade' (o futebol é idiossincrático, nem todos os brasileiros e jugoslavos são bons) e a do 'entrosamento' (os bons jogadores, para obterem sucesso individual e colectivo, têm de estar entrosados entre si [voltaremos a este termo]). Estas podem ser duas causas possíveis para, apesar de um ou outro apontamento, a canarinha do Governo Regional SAD nunca ter acabado um campeonato acima do 8º lugar. Há, no entanto, um acervo considerável de "gestos técnicos" que acabam por sustentar, ainda que debil e discutivelmente, a invocação da tal teoria dos brasileiros e jugolsavos. E esse acervo devemo-lo, na Madeira unionista, quase por inteiro à armada ofensiva balcânica e a dois franco-atiradores sambistas. Já aqui falámos do trio maravilha e dos dois comparsas tropicais, pelo que há que mergulhar de cabeça nas águas tépidas dos golos insulares: Jovo. Nascido Jovo Bosansic, em Novisad, na antiga Jugoslávia. O mais novo do trio. Não sendo demasiado alto (1,79m), era senhor de um físico equilibrado, um porte elegante. Homem de poucas palavras e olhos de um doce azul oceânico, chegou à Madeira na temporada de 92-93, proveniente do Vojvodina, para alinhar na maior parte dos jogos e facturar 9 golos e assinando o livro dourado da subida de divisão. Nas duas épocas seguintes não alinhou tantas vezes, tendo marcado apenas 1 golo em 94-95, ano em que o União desafiou a comunidade de estudiosos ao falhar a manutenção com uma equipa em que apenas tinha 3 portugueses e tudo o mais era brasileiros e jugoslavos, as tais garantias de bom futebol. No que concerne a Jovo, podemos dizer que a candura não o ajudou, em Portugal, mas que a elegância atraíu terras de Sua Majestade. Em 95-96 ainda começou a época no União mas transferiu-se de seguida para o Barsnley, onde fez duas temporadas a jogar regularmente nos escalões inferiores. Depois disso, seguiu-se o futebol francês e o Guingamp, também da 2ª divisão francesa. De regresso ao União em 99, foi no Nacional que prosseguiu a carreira, depois disso. Agora, Lepi. O avançado Lepi, petit-nom para Dragoslav Lepinjica,é o mais velho dos três. Poderoso, sorridente e bem penteado, era temível na grande área e fez escola no futebol jugoslavo, onde se formou, no Osijek e de onde saíu para jogar no Dínamo de Zagreb, ainda nos anos 80. Chegado à Madeira em 1990, é um dos históricos do clube, onde alinhou seis épocas seguidas e facturou, ao longo desse tempo, 25 golos, tendo participado em duas descidas de divisão e nunca jogando menos de 14 jogos por época. Na segunda descida, não resistiu e viajou uns quilómetros para o Machico, à altura, em 96, na segunda divisão B. Porém, foi e será sempre uma referência do ataque madeirense. Simic, Sasa Simic. Belo jogador. Explosivo no drible, atómico no pique, ágil no um-para-um. Dava gosto vê-lo escapulir-se aos adversários. Descoberto no Banja Luka, chegou à Madeira para imprimir velocidade no ataque, em 94-95, ano em que, malogradamente, os seus seis golos não foram suficientes para evitar a descida de divisão. A vingança do sniper não se fez porém esperar e no ano seguinte, ao longo de 28 jogos, marcou 12 golos, o que lhe valeram uma transferência para o Bessa, onde era visto como aquele que faria esquecer o brasileiro Artur, a quem muitos chamaram Rei daquela távola redonda onde também cavalgavam Timofte, Sanchez e Nuno Gomes. No Boavista fez duas épocas, não foi muito feliz (alinhou 18 jogos na primeira e apenas 11 na segunda) e o Beira-Mar foi o destino seguinte, onde alinhou quase a época toda e apontou 8 golos. Depois disso, o coração deste bólide falou mais alto e abdicou da Veneza portuguesa para regressar ao seu União, na altura, em 99, na segunda B. E aí, já em declínio, ficou, passeando a sombra daquilo que já foi, e as saudades dos antigos companheiros de bombardeio.

segunda-feira, julho 14, 2003

E ao 10º dia, a Caderneta renasce, qual Cesár Brito na Covilhã. Uma complicada lesão académica nos ligamentos internos cruzados impediu-nos de alimentar este monstro a papas de história e arroz de bola, nos últimos dias. Mas após o calvário, os leitores poderão contar com uma imparável torrente de posts e mais posts sobre os vários assuntos que a Caderneta foi deixando pendente. Apenas para abrir o apetite, viramos mais uma página do Dicionário Português-Futebolês e prosseguimos para a letra G: G para "Gesto Técnico": Expressão cunhada ao longo dos tempos no dialecto, é hoje uma das mais importantes e utilizadas muletas de comentador televisivo e radiofónico. A expressão é volante, volátil e polivalente, pois refere-se a qualquer gesto de um jogador de futebol em pleno desafio que agrade ou exclusivamente ao comentador ou ao público presente no estádio em geral. Por exemplo, quando um ponta esquerda a abrir um espaço para a entrada de um segundo médio ala numa diagonal, o seu papel pode ficar obscurecido pelo sucesso do ponta-de-lança que conclui. No entanto, o bom profissional de imprensa não deixará de salientar o "belíssimo gesto técnico" do ponta. Esta expressão tem vários equivalentes, mas raros são os que atingem o seu quilate lexical. Falamos, claro, de expressões como "execução" ou "trabalho" ou ainda "apontamento". Indispensável a esta expressão é também o seu adjacente qualificativo. Raros são aqueles que falam do gesto técnico sem lhe acrescentar "perfeito" e "belíssimo", ou, caso não tenha resultado, "imperfeito" ou "de fraca execução". Note-se que o acervo de qualificativos depende da escola teórica do comentador. Se estivermos a lidar com um Ribeiro Cristóvão, não é de espantar ouvir "gesto técnico de grande categoria", ao passo que um Gabriel Alves já apostará no rigor proto-científico de um "excelente gesto técnico" ou até mesmo "gesto técnico irrepreensível, a revelar excelente capacidade de leitura técnico-táctica", em momentos de maior inspiração. Jorge Perestrelo, por seu turno, já acrescentará duas ou três palavras em crioulo e um abraço para o seu grande amigo que almoça, à hora do jogo, na Mealhada. Outra grande questão em torno do "gesto técnico" prende-se com a validade da expressão: em rigor, qual é o gesto que não contém uma técnica? Ou, por outras palavras, a técnica não se verifica ontologicamente através dos gestos? Parece-nos que a utilização do termo visa elogiar determinado lance de um determinado jogador. No entanto, basta de redundâncias! Digamos sim à higiene discursiva, no que à bola diz respeito! Se todo o gesto inclui uma técnica, todo o gesto é técnico, mesmo que a especialização na técnica não se verifique, ou mesmo que a técnica não seja aplicada conscientemente. Há no entanto outra explicação avançada para a utilização tao corrente desta expressão. A explicação de que em Portugal, nem todo o gesto futebolístico chega a conter técnica, tal é a pobreza de muito do futebol aqui jogado. Atenção: a quem se esconde à sombra cobarde deste tipo de teses, respondemos com elevação teórica - mesmo o futebol, quando não é bem jogado, implica técnica. os falsos profetas que não reconhecem isso apoiam-se num paradigma caduco e há muito abandonado na ciência da bola, o paradigma de que há a "técnica" e a "força", quando na realidade (já o dissemos!) tanto uma como outra são componentes da mesma acção. A esses, e por respeito tanto à língua como aos leitores como ao verdadeiro amante do desporto rei, dizemos de uma vez por todas: dicotomias, só a "técnico-táctica", e o resto são centros para a bancada.

segunda-feira, junho 30, 2003

Inaugura-se aqui mais uma secção temática dentro da Caderneta, para acumular às já referidas Suicídios Futebolísticos (ainda estamos à espera do texto sobre o suicídio do Peixe, Pedro!), Duelos Sanguinários e Retrospectivas de Plantéis: o tão útil e indispensável dicionário Português-Futebolês, acervo de expressões cunhadas tanto nos relvados como nas arenas de comentarismo, paineleiro e de cabine, cá da terra. A ordem alfabética será amplamente desrespeitada, assim como quem se esqueceu anos a fio da regra dos "6 segundos com a bola na mão dá direito a livre indirecto, ó redes". Hoje, e porque a hora já avança manhã dentro, começamos com a letra D: D para "Defesa a dois tempos": Expressão amplamente difundida em português (e que não encontra paralelo em qualquer outra língua, que se saiba), tem uma origem incerta. Há correntes teóricas que a associam a repórteres de rádio no terreno, daqueles que dão as suas achegas de trás da baliza e cujas tácticas de auto-legitimação perante os Perestrelos que ficam na tribuna incluem precisamente o recurso a expressões deste quilate; outras ligam-na ao mais mediático linguista do futebolês da década de 90, Gabriel Alves. Aqui na Caderneta inclinamo-nos mais para a primeira, deixando ao analista o título de principal difusor da expressão. Ora esta expressão é utilizada correntemente como referência a uma defesa, por parte do guarda-redes, que não é consumada no imediato da recepção da bola a partir do remate do avançado. Trocado por miúdos, é quando o guarda-redes, ao efectuar a defesa, só agarra a bola firmemente contra si à segunda, deixando-a primeiro cair ou rechaçando-a para a frente. O que nos intriga é a questão do "dois tempos". Porquê tempos? Porque não 'modos', uma vez que à primeira já ele tinha defendido, apenas de maneira diferente (mais inseguro)? Ou porque não 'passos', numa visão mais evolucionista de que a diferentes defesas correspondem diferentes percursos, sendo assim a defesa um fim e todos os passos até lá, o trajecto para esse fim? O emprego do termo 'tempo' é uma falácia, porque implica que a defesas diferentes seja inerente um mesmo compasso, uma mesma cadência. Esta constância, esta regularidade axiológica não se coaduna com a evidência ontológica de existirem tantos guarda-redes como estilos distintos. A coincidência de compasso nas defesas de um Hubart e de um Brassard residirá, até prova em contrário, num casuísmo que destrói a possibilidade de se falar de 'dois tempos' genericamente. A não ser que se pressuponha que estes dois tempos são de duração distinta e variável entre si, o que para além de chutar a discussão para um nível de abstracção absolutamente ridículo, só vem trazer à baila mais questões passíveis de a refutar: se os tempos são distintos entre si, porquê falar de dois e não quatro (GR lança-se ao ar, GR defende para a frente, GR lança-se ao chão, GR agarra a bola)? E qual a relação entre o tempo e a acção, ou entre o tempo e o modo? São estas questões que complicam irreversivelmente a sociabilidade entre os praticantes quotidianos do futebolês e as pessoas um pouco mais obsessivas com o idioma camoniano. Ou só picuínhas. Ou que não liguem puto a bola e a estas coisas. De qualquer modo, quem não conhecia a expressão, já não vai estranhar, da próxima vez que o Gabriel vir, em directo, o Pedro Roma assustar os tunos depois de um remate do Sokota e empregar, com alívio, esta expressão. A isto, nós aqui gostamos de chamar serviço público.
Caderneta da Bola: Um blog para quem nunca teve dificuldade em distinguir o Chiquinho Conde do Chiquinho Carlos! Passes em profundidade para: caderneta-da-bola@megamail.pt
E porque aqui na Caderneta da Bola também somos blogoesféricos (mais para o esférico do que para o blogo), não escapamos às polémicas que vão assolando este mundinho. Diz-nos um leitor que faltámos ao respeito ao União da Madeira e que fomos imprecisos no relato sobre Jokanovic e Latapy. Sustenta que quando se deu a vingança, Jokanovic já estava no Marítimo e a agressão foi no túnel. Lançado o anátema da dúvida, compete-nos alvitrar que aqui na redacção somos jovens e saudáveis demais para que a memória nos traia num assunto com esta dimensão. Existe uma recordação nítida e fotográfica e uma comprovação posterior. O único ponto em que se admite a falibilidade, ainda que remota, é na camisola que Jokanovic envergava na altura. O que afinal, tratando-se à mesma de clubes pagos maioritariamente pelos contribuintes, acaba por não ser assim tão relevante. Ainda assim, regista-se e agradece-se a informação sobre a agressão no túnel (ainda carente de confirmação) e aproveitamos para referir que, como eventual redenção pela troca do União com o Marítimo, num futuro próximo (infelizmente, não demasiado), aqui se dará ao União de Zivanovic, Rodrigão, Lepi, Helinho e, claro, Milton Mendes, a atenção merecida, numa detalhada, apetitosa e, acima de tudo!, respeitosa resenha historiográfica. Saudações cubanas.
Na semana em que Mauro Airez volta à ribalta como carrasco, desta vez não de clubes do meio da tabela mas dos cofres do Benfica, a Caderneta não pode deixar passar em claro a oportunidade de recordar esse vagabundo das pampas. Mauro Gabriel Airez, nascido em Buenos Aires em Outubro de 1968, começou a jogar à bola nessa magnífica cantera peronista que é o Gimnasio y Esgrima de la Plata, em cujos balneários tomaram banho estrelas como Guly (actualmente no Milan) ou os irmãos Schelloto. O jovem Mauro, acabadinho de ascender dos juniores, com 20 anos, rubricou na sua primeira época de sénior 5 golos, ao longo de 30 partidas. A posição? Avançado, claro está, e não se fala mais nisso, para já. As temporadas que se seguiram, repartidas entre o Gimnasio, o Argentino Juniors e o Independiente, todas elas recheadas de golos e de exibições perfumadas, valeram-lhe um lugar num charter para Bari, onde a época lhe terá corrido tão bem ou tão mal que dali saíu, meses depois, ainda em 91, para o Belenenses, à altura na Segunda de Honra. É escusado dizer que foi no Belenenses que o delantero Maurito conheceu o esplendor. Nessa primeira época rubricou, ao longo de 32 jogos, 11 golos e os vizinhos da Casa Pia subiram à primeira divisão. Confessamos que Mauro sempre agradou de sobremaneira ao dueto caderneto. O seu jeito índio e a propensão para a pantomina do esférico, o carinho com que tratava a bola, a movimentação imprevisível em campo e um baloiçar constante entre as alas, faziam de Mauro um jogador de encher o olho. Para além disso, era um exemplar executante de pontapés acrobáticos, um artesão ocasional mas retumbante de guapíssimos golaços de placa. Abreviando, as épocas seguintes em Belém colocaram Mauro na lista dos avançados mais carismáticos a pisar os nossos relvados, a par de nomes como Hassan, Chiquinho Conde ou Karoglan. Foram 3 épocas e meia de glória azul-monárquica até à transferência para a Luz, em Janeiro de 96. Como em qualquer transferência do Belenenses para outro clube, esta também envolveu mais do que um jogador. O parceiro de Mauro foi, na ocasião, o brasileiro Luiz Gustavo, também avançado com cara de mau que chegou a Benfica com craque escrito na testa e acabou por deixar o clube sem que alguém tenha tido tempo, afinal, de se lembrar dessa mesma testa. O desperado Airez, por seu turno, veio parar numa má altura à segunda circular: a movida era intensa e marcada pela chegada de camiões de jogadores como Clóvis, Ailton, Paulão etc, multidão que tornou indistinto o talento do nosso argentino, que até chegou a ser convocado para a selecção das pampas por Carlos Bilardo. Arriscamos dizê-lo que nas duas épocas em que equipou de vermelho, o mais significativo que soube fazer foi marcar um golo naquela final da taça, cujo jogo propriamente dito foi apagado da memória dos adeptos de futebol pelo lançamento dum very-light. A partir daí, começou o declínio: chutado para a Reboleira para emparelhar com Mário Jorge (outra ex-next big thing do futebol português), acabando depois perdido algures pela 2a de Honra. Hoje em dia, Mauro Airez é um esmerado empresário e representante de colossos como Zarate (fulminante sul-americano que encantou Alverca) e vai passando os dias a tentar liquidar as dívidas que o impeçam de passar pela dramática penúria em que se viu envolvido após a sua passagem pelo relvado do Estoril. Penúria que uma Brigitte Martins ou um José Gabriel Quaresma deveriam ter tratado com mais atenção no seminal Contra-Ataque, escusando Mauro de a relatar com humilhante indiferença a um jornal desportivo na época. Resta-nos acrescentar que futuros alvos de recensões aqui na Caderneta, como Salam Sow (um leão indomável), David Embé (outro, que ainda por cima fugiu de Belém para a Grécia) ou Gilberto Monga (apenas para citar alguns exemplos), nunca fizeram esquecer no Restelo o mítico argentino. Caso para dizer que, sendo agora o titã azul-celeste o tutor legal de algumas das maiores promessas do futebol latino-americano (Zarate! Zarate!), o Belenenses bem pode recorrer ao sábio pai para encontrar um filho pródigo. Temos dito.

quinta-feira, junho 26, 2003

Devemos confessar que ficámos algo sentidos com o epíteto de " o mais conservador dos blogs portugueses" no Quinto dos Impérios (http://noquintodosimperios.blogspot.pt). Podemos mesmo considerar tais declarações como um tackle por trás, à margem da lei, passível de ser admoestado com a exibição directa do cartão vermelho. Neste nosso primeiro e último post de teor político (a malta curte é bola!) afirmamo-nos, sem qualquer tipo de reservas, como adventistas do futebolismo dialético. Esses comentários são, no fundo, a antítese que, opondo-se à nossa seminal tese, ajuda a germinar a nova aurora futebolística, a síntese revolucionária que pintará de liberdade os anais da história da bola, quais Pedros Miguéis a emergir do proletariado barreirense para o patamar das classes esclarecidas. Isso sim, nós conservamos.
Infelizmente não temos tempo para responder aos e-mails todos, mas muitas das questões colocadas, ficarão a seu tempo, resolvidas ou quase. A paciência é uma grande virtude, como aliás ficou demonstrado na carreira de Herivelto, brasileiro do Marítimo que suou as estopinhas para ganhar a titularidade a Jorge Andrade.
Um ataque extremamente agudo de irresponsabilidade leva-nos a interromper por breves minutos os nossos afazeres técnico-profissionais-ó-académicos e partilhar com a imensa minoria mais uma memória, mais um símbolo, mais uma viagem. Desta vez, aterramos no já célebre triângulo Chaves-Braga-Croácia e raptamos à bruma da história essa lenda que dá pelo nome de Karoglan. Mladen Karoglan, um nome que dá vontade de saborear. O primeiro 'a' aberto, um 'den' quase apocalíptico, uma pausa para respirar no desabar do mundo, e recomeçar, 'karo', a expirar o 'o', lentamente, como quem fuma o último cigarro antes da execução, e 'glan'. Karoglan. Decorria o ano de 1964, os Beatles rebentavam as tabelas, Nelson Mandela era preso no Apartheid, revolta nas ruas do Harlem, motins raciais, o primeiro transplante do pulmão, e, no dia 6 de Fevereiro, na pequena cidade de Imotski, a cidade dos dois lagos do condado de Split e da Dalmatia, nascia Mladen Karoglan. Peripécias múltiplas e altamente fastidiosas, as futebolísticas das quais certamente orquestradas por maneigers sem escrúpulos, trouxeram o jogador até Chaves. E se para trás do Marão mandam os que lá estão, para os avançados de leste abre-se sempre uma excepção (rima e é verdade!). Se na época de 91-92, fora Rudi, com 10 golos e pela segunda vez consecutiva, a ostentar o galardão de melhor marcador dos flavienses (feito que viria a repetir no altar que o tornaria um santo, a Capital do Móvel Paços de Ferreira), em 92-93, Karoglan aterra no aeródromo para singrar e ser a única luz numa época de trevas. (pequeno parentesis: a referência ao aeródromo não foi inocente. Foi também neste aeródromo que anos mais tarde a equipa do Sporting viria a aterrar para jogar uns quantos minutos de descontos de um jogo que acabara dias antes porque a luz veio abaixo. fim de parentesis.) Nessa época mefistofélica, em que o GD Chaves desceu à 2ª divisão acabando com 16 pontos, o último lugar e apenas 4 vitórias, todas elas em casa, Mladen Karoglan conseguiu ainda assim marcar 10 golos. Se compararmos a perfomance do croata com a de Serifo e quejandos, percebemos facilmente que aquele não era jogador para alinhar na divisão de honra. Atentos como sempre, Mesquita Machado e seus capitães repararam nisso e levaram-no para a Nápoles portuguesa, Braga, essa cidade idiossincrática que tanto pode parir uns Mão Morta como um Cónego Melo. Em Braga, na época de 93-94, o nosso croata ficou-se pelos 9 golos mas no posto de titular indiscutível, com 33 partidas jogadas. O melhor marcador da equipa. Nada mau, para uma época de ambientação. Porque é que Karoglan marcava tantos golos? Porque, caríssimos, estamos perante o típico exemplar do avançado balcânico. O arquétipo do avançado móvel, aguerrido, repentino, de técnica rápida e repertório imprevisível. As comparações chovem em catadupa: lembram-se de Pedrag Mijatovic? Karoglan tinha a barba um pouco mais comprida e nunca usou, que se saiba, bigode. De resto, umbilicalmente semelhantes. Porquê Mijatovic na selecção das camisas mais parecidas com toalhas de mesa de pizzaria e não Karoglan? Expliquem-nos... Na época seguinte, ainda no arcebispado, tornou a ser titular mas facturou um pouco menos: apenas 7 golos. Em 95-96, 8 golos, 28 partidas jogadas. A influência crescia. Via passar ao seu lado jogadores como Forbs (em forma, uma autêntica gazela) e Toni (uma viga com a técnica de uma traineira), por exemplo, e mantinha-se tão firme no onze como no coração dos Red Boys, os irredutibile tiffosi minhotos. Recapitulando, estamos com 24 golos em 3 épocas. Karoglan achou pouco e vai daí carimba as redes por 14 vezes na época seguinte, em 96-97, ano em que Jardel já jogava nas Antas, e pontificavam por esse campeonato fora estrelas como Gilmar (no Guimarães), 47 avançados brasileiros na Luz e o tridente ofensivo flaviense que carregava a cruz de fazer esquecer Mladen: Miner, Sabou e Matute. Se Karoglan já estava no panteão dos artilheiros e já se falava em transferências para os grandes, assim ao jeito de um Drulovic, o croata repetiu a dose em 97-98 com mais 14 golos e mais uma época de glória. Note-se que estamos a falar de um jogador com a provecta idade de 34 anos. Porquê falar de Karoglan, afinal? Razões de várias ordens, entre as quais o esquecimento a que figuras como estas (que conseguem aguentar tantos anos seguidos em Braga e ainda por cima a marcar golos) têm sido votadas, o exemplo pedagógico que este jogador pode constituir para todo o menino cujo sonho é ser o próximo Eusébio (Akwá, Edgar, Pepa: ponham os olhos no mestre!) e, por fim e porque nunca é demais lembrar, o delicioso aroma do futebol de leste e a tradição que tem vindo a cunhar, desde o início dos anos 90, nos relvados viriatos. Disso são exemplos Djukic, Zoran Ban (um jogador bigger than life que a Juventus emprestou ao Belenenses nos idos anos de 94). Milovac (o arranha-céus de Paranhos) e metade do plantel do União da Madeira, onde pontificaram a dada altura, Lepi, Jovo, Simic e o já aqui referido Jokanovic. Venha a nós o vosso Leste...

sábado, junho 14, 2003

Já que estamos numa de leonices, esta vai direitinha para o Terceiro Anel, que nós bem sabemos como a rapaziada adora estas coisas: que é feito Mario Cáceres, 'El Toro', que chegou a Alvalade há dois anos rotulado de matador para fazer esquecer Acosta?
Breve apontamento antigo sobre uma resenha do Terceiro Anel, kuíca para inaugurar uma nova secção, a dos Suicídios Futebolíticos: De novo o Sporting. Julian Kmet, astro argentino promissor e tudo o mais que já foi mais que falado, terá assinado a sua sentença de morte em Alvalade, não com as exibições prometedoras mas pouco concretizadoras cada vez que entrava na 2ª parte, mas sim com um gesto, um único gesto fatal. Numa certa pré-época que nos bem sabemos, o Sporting defrontou o Bahrein numa noite de verão. Julian Kmet pega na bola a meio do meio-campo do Bahrein, levanta a cabeça, arma o pé-canhão e desfere, a uns bons trinta metros da baliza, um tiro descomunal ao ângulo do tipo do Bahrein que naquela noite calhou estar à baliza. As centenas de espectadores que estavam no estádio reagiram entre o estupefacto e o medianamente contente por o Sporting marcar um golo a uma selecção cujo país poucos sabiam que existiam. E Kmet, como reagiu? Talvez acossado pela pressão, o virtuoso argentino despe a camisola do Sporting, atira-a para o chão e vira-lhe as costas. Às vezes, há gestos capazes de demonstrar todo um estado de alma e despoletar todo um terramoto, e nós aqui na Caderneta acreditamos que desde então, tanto Julian já não contava alinhar de verde e branco por muito mais tempo como as gentes leoninas deixaram de o querer por lá. A pergunta que se mantém é: e se Kmet tivesse corrido metade do campo até ao topo sul, abraçado as redes e tivesse deixado a camisola entregue à Juve Leo?
Depois, um sincero agradecimento às palavras amigas do blog http://traducaosimultanea.blogspot.com e do blog http://escala_estantes.blogspot.com . E agora, após prolongada ausência por motivos de força maior (são sempre, amigos, são sempre...), impõe-se um apontamento sobre o terceiro búlgaro. O Terceiro Búlgaro. Fomos dando aqui conta que já se pegou demasiado no Porto, no Boavista e no Benfica e ainda pouco no outro grande, o Sporting. Tempos virão em que traremos à baila o historial dos defesas laterais, desde Gil, o Baiano a Andrija "trabalho para ser melhor que Maldini" Balajic. Por enquanto, somos movidos pela urgência da justiça. A justiça de dedicar umas linhas ao búlgaro que chegou a Alvalade para singrar mas que ficou infelizmente na sombra de Balakov, Iordanov e Cherbakov (que não era búlgaro mas como tinha um apelido terminado em 'ov' acabava por funcionar como 'búlgaro emprestado'). Trata-se de um homem que carregou, ao longo da carreira, a cruz de ostentar um epíteto não terminado em 'ov' mas em 'ev'. (e todos nós sabemos que os 'evs' búlgaros circulam ali no vector que vai do Penev ao Iliev e tudo o mais é paisagem). É mas não devia ser. Bontcho. Bontcho Guentchev, oriundo de Tarnovo (terra natal também de Balakov), assim se chamava esse médio-ofensivo de altíssima craveira que pouco tempo esteve em Alvalade, algures ali por 92-93 e 93-94, precedente e procedente para o Ipswich Town. Dos tempos lisboetas, fica um punhado de bons apontamentos e um mítico pontapé de bicicleta, golaço de antologia, ao Benfica numa Taça de Lisboa, no Zézinho de Alvalade. Era um centro-campista volante, de futebol alegre mas que oscilava entre o inconsistente e o mágico, com maior pendor para o primeiro. No entanto, aqui na Caderneta, acreditamos que só facto de ter estado na sombra dos 'ovs' o impediu de alinhar ao lado de Paulo Sousa e Figo na alta-roda do futebol português até ao Natal. A comprová-lo está o estatuto de ídolo a que ascendeu no coração dos exigentes adeptos do Ipswich Town, que até lhe fizeram um cântico adaptado desse hit clássico da electrónica do início dos anos 90 "No Limits", dos 2 Unlimited. Várias épocas no Ipswich, outras quantas no Levski de Sofia, campanhas de Mundial'94 (glorioso mundial da Bulgária, em que foi suplente utilizado mas chegou a marcar um penalty ao Mexico) e Euro'96 e depois o ocaso, pelo Luton Town até aos amadores do Hendon. E agora, aos 39 anos, que faz Bontcho Guentchev, questionar-se-ão muitos por aí? Bontcho tem um bar, o Strikers, na zona de West Kensignton (ali como quem vem de Charleville Road para Stamford Bridge), em Londres, onde torce, empedernido e em família, pelo Chelsea e ao comando do qual cumpre a sua função social de indutor alcoólico das hordas de hooligans que dos 'blues' que aí se deslocam. Bontcho, se puderes contacta, que temos algumas perguntas para te fazer. Como é que te tornaste um Paulo China londrino? Porquê o Chelsea com tanto clube aceitável aí na zona? E que história é essa de deixares o Iarvo crescer com uma camisola do Chelsea vestida em vez de uma do Sporting? Isso é maneira de criar um filho? Aparece, pá, e traz cerveja.
Antes de mais nada, uma preciosa adenda do Filipe sobre (como ele lhe chama) o Anúbis dos Ovos Moles, o nosso Magdi: o robusto centro campista do Beira-Mar não só foi o único internacional daquele clube a alinhar no Itália'90 como chegou mesmo a facturar contra... a Laranja Mecânica, num jogo em que Gullit e muchachos não foram capazes de abalroar a nau capitaneada por AbdelGhani. Muito obrigado, Filipe, e não te esqueças do relato da assistência de Ronald Baroni para Rui Barros em Santo Tirso!

segunda-feira, junho 09, 2003

Magdi Abdelghani, o Mujahedin da Ria, o Ayatollah do Mário Duarte. Centro campista. Forte. Portentoso. Poderoso no passe. Incisivo na desmarcação. Algo lento. Visão Periférica. Barba farta. Encorpado. 1,78 metro. 77 quilos. 37º melhor jogador africano de sempre pelo France Futebol. 4º melhor jogador africano do ano de 1987 (quando ainda jogava no Al-Ahly do Cairo), distinguido pela mesma publicação, ficando à frente de nomes como Roger Milla e Abedi Pelé. Esteve no Beira-Mar e foi o único jogador desta equipa a alinhar no mundial Itália'90. A-b-d-e-l-g-h-a-n-i. Quem já se havia esquecido deste nome merece escolher entre trinta chibatadas auto-infligidas e um apedrejamento em praça pública. O faraó egípcio que passou como um cometa pelos nossos relvados. Onde quer que estejas, estamos aí.
A notícia, se calhar não tão bombástica assim mas de qualquer modo significativa: Isidoro Rodrigues é cantor! A Caderneta da Bola viu, com estes quatro olhos que a terra há-de comer, o árbitro Isidoro Rodrigues a cantar no programa de Manuel Luís Goucha, algo como 'Ando louco para te ver' ou título similar de assinalável gosto. Depois de Neno, O Guarda-Redes cantor, o Júlio Iglésias Português (e protagonista de um dos mais macabros incidentes que o futebol português já viu, quando numa defesa mais efusiva abocanhou as redes, ficando pendurado e deslocando o maxilar), é o homem de preto que se lança nas lides. Isidoro vestia um pull-over vermelho e calças caqui e agitava o braço direito estalando os dedos, enquanto cantava algo entre o pimba (no refrão) e o canto gregoriano (nos versos). Isidoro é, como certamente recordarão, o árbitro que despontou para a ribalta num célebre União da Madeira-Sporting, jogo em que multiplicou cartões como Cristo fez aos pãezinhos, chegando ao cúmulo de manchar a vermelho o currículo do pastor Marco Aurélio, proeminente líder espiritual dos Atletas de Cristo, actualmente perdido em terras transalpinas, depois de passear a sua classe e o seu sorriso estupidamente imaculado por Alvalade.

sexta-feira, junho 06, 2003

Regressando ao domínio historiográfico. Depois do Gil de Caciolli, do Leiria de Pedro "O Cigano d´Ouro" Miguel, e antes do Chaves de Matute e do Tirsense de Best... eis o Leça Futebol Clube! O Leça de quem?!? Por onde começar...? Pela baliza? Pelo ataque? Esbarramos inevitavelmente na complexidade desse mantra, um fratal eterno de dívidas, barretes e futebol muito duvidoso. Assim, na dúvida, comecemos pelo princípio. E no princípio era o verbo, ao qual se seguiu, rapidamente, Vladan. O goleiro Vladan, também conhecido por Stojkovic, o Aranhiço de Lovnica, para quem as balizas sempre foram pequenas demais, foi anos a fio a maior esperança dos adeptos do subúrbio industrial do Porto. Era em Vladan que residia a confiança quando tudo parecia falhar, quando Fernando Festas era contratado pela 18ª vez, quando Alfaia perdia aquela bola preciosa para Dino, era para os quase dois metros deste sérvio que os olhos se voltavam nos momentos de maior aperto. Rápido entre os postes, lento em tudo o mais, uma gritante inaptidão para jogar com os pés, inaptidão que porém compensava com o seu sorriso característico e sempre constante (sorriso aliás que só teve paralelo em Portugal naquele que andou anos a fio estampado na boca de Milton Mendes). Extra-futebol, este Jorge Campos balcânico era também ele um esteta. Não é por acaso que foi por si que, a norte do Mondego, a moda da calça preta almofadada pegou de vez (apesar de correntes teóricas algo duvidosas associarem esta moda a Busquets do Barça ou a Kralj do FCPorto). Na defesa, referiremos apenas dois exemplares do rigor defensivo. Matias e Alfaia! Matias... o que dizer? Começar pela estética ou pelas aptidões futebolísticas? Central de vasto currículo, calcorreou clubes como o Gil Vicente e até mesmo o Futebol Clube do Porto (nada a ver com uma "ajudinha" um ano antes da sua contratação num jogo contra o FCP) mas foi no Leça que evidenciou todo o esplendor do seu futebol musculado e quase-autómato, de uma eficácia impressionante na difícil arte do alívio para onde está virado. Portador de um bigode que já não se via em relvados lusos desde Chalana e Frasco, jogava de igual forma com ambos os pés mas não necessariamente bem com nenhum deles. Foi também uma inspiração para as gerações seguintes. O mui aclamado central Gaspar viu em Matias o seu mentor, por exemplo, tendo inclusive actualizado o bigode para uma barba consistente. Passemos agora a rigorosa lupa historiográfica sobre Alfaia, seu companheiro timorense. Alfaia, o Xanana de Leça, não era, paradoxalmente, um arauto dos direitos humanos. Desconfia-se aqui na Caderneta que o próprio apelido, seu último nome e nome de guerra nas lides da bola, terá sido um exercício premonitório dos seus progenitores acerca da futura relação do seu rebento com os atacantes adversários. Alfaia começou em Portugal a carreira com uma travessia no Alentejo, entre o Portalegrense e o Elvas, até assinar pela Tuna da briosa, onde manteve a sua média elevadíssima de jogos por época, algures pelos 27 jogos. Depois da tuna, o Rio Ave (e decerto que haverá quem o relembre com saudades em Vila do Conde - Rui estás desmarcado, olha o passe em profundidade!) e, depois de um fugaz regresso a Elvas, ingressa no Leça para, em dois anos, ser um dos pilares da campanha de ascensão à primeira divisão. Era um central rápido e aguerrido, de esgar intimidatório e olhar algo vítreo. Um interessante contraste com Vladan dos Olhos Doces e com Matias. Foram épocas a fio (3, mais precisamente) na primeira e finalmente a descida à 2ª, tendo partilhado uma série de situações dramáticas, como ordenados em atraso, trabalhar com Joaquim Teixeira (sim, esse que "supostamente" encomendou a Paula para o estágio da selecção de todos nós), Rodolfo Reis e sucessivas humilhações nos media face à fraca prestação colectiva da sua equipa. Uma palavra de homenagem para Alfaia... continuou em Leça apesar de tudo isto e foi lá que terminou a carreira em 2000. Agora estamos a ser expulsos da redacção por uma ameaça de bomba (chamada anónima da zona de Chelas). Continuaremos mais tarde.
Esta manhã apetece-nos gritar bem alto: João Manuel Pinto, o Dread Malaico de Chelas! Pronto. Já gritámos. Devemos dizer que o modus operandi deste vivaço nunca nos enganou e não foi, por isso, com espanto que verificámos que o sujeito é dos mais puros produtos da cantera de Chelas, possuidora de toda a escola de futebol suburbano (o remate em jeito para não acertar nos carros estacionados, o jogo interrompido por causa do vidro partido da vizinha, a cuspidela ocasional no adversário e respectiva rixa entre bairros...). De notar também a relação estreita entre a escolinha de Chelas e o maior rival do Clube Futebol Benfica. Também Miguel, consagrado ícone do submundo lisboeta, nasceu para a bola em Chelas e agora é titular de águia ao peito. E também Miguel partilha com o Dread Malaico da pêra à D'Artagnan uma apetência para a confusão, ou partilhava, já que o castelhano Camacho tratou de refrear um pouco a fera, que esteve prestes a ser enjaulada depois de 2 amarelos em 30 segundos nas Antas, uma média de fazer corar Paulinho. Enfim, enough ie enough, e a Caderneta não veio ao mundo para relatos da ribalta mediática. Paramos por aqui a relação Chelas SLB e demais anexos e prosseguimos para outra.
Congratulamos uma vez mais a vaga revivalista em torno de figuras lendárias (e não do triste fado, caros comparsas do terceiro anel, não digam isso que nos dói a alma) mas não sem antes deixarmos de demonstrar ao éter o desencanto perante o silêncio demasiado ensurdecedor: "Fó-Fó", perdão Clube Futebol Benfica, é para continuar no esquecimento? Prometemos investir a fundo, apesar do silêncio, apesar das contrariedades.

quarta-feira, junho 04, 2003

A Caderneta, ao efectuar uma incursão pelos seus arquivos e fontes documentais com o objectivo de descobrir algures perdidas no meio dos anos 90 outras equipas cujos planteis fossem níveis de menção, descobriu informações saborosas sobre o Estrela da Amadora (Bem-vindos de volta à primeira!!). Ao contrário do que poderiam pensar os nossos estimados leitores, este post, não é dedicado ao Estrela, antes, através da análise do plantel dos amadorenses, descobrimos que essa (mais uma) promessa por cumprir, de seu nome Calado, antes de rumar à Amadora, militou nos planteis do segundo, para muitos primeiro, maior clube da freguesia de Benfica. Falo do Clube Futebol Benfica, apelidado pelos adeptos do Sport Lisboa de “Fó-Fó”. “Fó-Fó o caralho!”, diriam certamente os adeptos do CFB, e nós aqui na Caderneta assumimos que jamais nos referiríamos a este clube nesses termos depreciativos. O Clube Futebol Benfica tem história, e gloriosa também. Não pensem que as modalidades mais representativas deste clube são os dardos, a sueca ou o dominó. Não. O CFB chegou a ser campeão nacional de hóquei e hóquei em campo, além de ser um autêntico viveiro de futuras grandes promessas, não só no futebol, mas também em voleibol, andebol de sete, basquetebol, rugby, atletismo, ginástica, pesca desportiva, natação, ténis de mesa e "karaté". Este post pode ser considerado como uma justa homenagem a um clube que viu o seu rival de sempre lá da freguesia alcançar grandes conquistas aquém e além mar. Vivendo na clandestinidade, e suportando décadas de insultos e de humilhações, o Clube de Futebol Benfica manteve a sua identidade e cultivou um sentimento “anti-lampião” que os adeptos do FC Porto ou do Sporting jamais sonharão possuir. Neste clube estão os adeptos que mais repulsa sentem pelo SLB. Perguntem-lhes se tiverem coragem! Mas não lhe chamem “Fó-Fó”!! A não ser que a vossa integridade física não seja uma prioridade. Voltando a Calado. Os adeptos do CFB, num complexo paradoxo emocional, choraram de tristeza ao ver o seu menino de cabelos dourados partir para a Amadora, mas de alegria ao ver um filho da casa singrar na primeira divisão. Porém, nada podia preparar os adeptos do “Fó-Fó”, perdão, Clube Futebol Benfica, para o que se iria passar. Então não é que o seu menino, o seu ídolo, o seu surfista da bola, assinou pelo SLB?!? Não é possível, pensaram os tiffosi do CFB!! “O Record enganou-se pá”. “Alguma vez?”. Mas, infelizmente, era verdade. Uma onda de indignação e revolta deixou a freguesia de Benfica numa quase lei marcial, havendo mesmo notícias não confirmadas de atentados bombistas junto ao mercado de Benfica. Um fanático do CFB contactado agora mesmo via telemóvel a partir da Redacção da Caderneta confirma o cenário "Benfica a ferro e fogo" por causa da infame transferência do agora apelidado "Judas de Benfica". Não é por acaso que mais tarde, esta personalidade dos passes longos viu o seu percurso manchado por vis calúnias de autor incerto que nos recusamos a relembrar (apesar de vontade não nos faltar). Quem os consegue, afinal, censurar, doridos da alma e fúnebres que desde então viveram, os míticos de Sete Rios? Apenas conseguimos imaginar o que lhes perpassou pela alma...