quarta-feira, fevereiro 20, 2013

Saigão


Abril, 2009

Saigão... foda-se, ainda só estou em Saigão. Cada vez que penso que terei que sair algum dia e voltar para a selva. Quando voltei a casa pela primeira vez depois da minha primeira missão, aqueles dois anos em Timor, foi pior. Acordava à noite e não havia nada. Quando estava fora só queria lá estar, mas quando lá estava só pensava em voltar para a selva. Já cá estou há uma semana... à espera de uma missão... da missão. A amolecer. Cada minuto que aqui estou, enfraqueço, e a cada minuto que passa eles fortalecem-se, emboscados nos arbustos à espera do treino, à espera que ele os leve à glória. Cada vez que olho em volta, as paredes parecem mais estreitas, o quarto mais escuro.

A qualquer momento entrarão no quarto e farão oficial o que já sei há demasiado tempo. Queria uma missão, outra missão, quem sabe a última, e era exactamente isso que teria. Semanas, meses, quem sabe anos, no rasto, na sombra dele e do seu mito. Os campos, os relvados mortos, os telhados de zinco quebrado dos balneários, as notas e mais notas traduzidas destes caracteres malditos que invadiam até os letreiros dos meus próprios pesadelos. E as fotos do seu sorriso e do bigode, do seu chapéu de pala e do olhar próximo e triunfal, desse Ícaro luso da bola indochinesa, destinado a queimar as asas no final da época.

Não foi por acaso que me escolheram para isto. Algures alguém em Portugal não percebeu como é que um homem passa de fracassado em Paços de Ferreira a imperador do esférico vietnamita, idolatrado nas profundezas do Mekong e promovido a líder máximo do país futebolístico. Tudo isto em apenas oito anos. Algures alguém em Portugal não percebeu, como não percebe muitas outras coisas, mas não teve coragem de vir até aqui, à beira dos pântanos, ao prenúncio da monção eterna, buscá-lo, vê-lo e liquidar o mito.

Precisavam de alguém com estofo, alguém tarimbado no sulcar das águas do Mar da China. Há anos que conheço o ultramar e desde que deixei os jovens da Luz que cresço nas suas desgraças. De Timor para encontrar Febras, Tigre na Malásia e guiar o navio do Sabá até à chamada da Madeira. Era a equipa B do Marítimo de Veracruz, essa equipa de Bonamigo nos Barreiros, mas voltar a casa não era voltar a casa porque já não havia casa e a haver não seria certamente nas encostas sobre o Funchal.

Pouco tempo até voltar para longe. Hong Kong, novamente aquele mar pardo e a vertigem das montanhas de aço, encadeados pelo reflexo do sol nas vidraças dos arranha-céus a caminho do treino, e o grupo do Porto no South China. O Oliveira, o Correia e o Coelho de Gaia, com o Detinho a fazer daquele micro-Macau um Matosinhos. E depois mais turbulências, desenganos, tumultos entre expatriados e o refúgio em casa. Lousada, até perceber que Lousada custa a ser casa até para quem nunca saíu de lá. E novamente não dormir, não treinar em condições, não ver a substituição a tempo, não ver o tempo de ir embora. A memória de Hong-Kong torna-se dócil, aprazível. Momento de voltar para o mar, para o Detinho, de comungar a inadaptação lusitana com o germano-brasileiro Tales e, mais tarde, de receber o grande Nuno Cavaleiro nessa dianteira, gerir a faísca com o super-herói menor, sambista de shaolin Max Gol.

Até aqui. Até Saigão. Voltar a ser José Luís, em missão pelo Coronel Calisto, feixe de êxito e temor na escuridão deste futebol das antípodas. Dentro de pouco, muito pouco, alguém entrará pela porta e me dirá que está confirmado: director técnico do Dong Tam Long An. “Dong Tam Long An, como o Boavistão”, dizia o adjunto vietnamita do director. “Boavistão”, assim tal e qual, com aquele nasal claramente treinado pelo senhor Calisto. “O senhor Calisto agora vai guiar o nosso país à aurora da Tiger Cup, senhor José Luís”. O senhor Calisto e o filho do senhor Calisto, tentáculo imberbe dessa particular mitomania, o Jorge Mendes de Ho-Chi-Minh, como tantos outros que conheci. E o senhor José Luís vem para fazer esquecer o senhor Calisto porque é o mais parecido com o senhor Calisto que conseguimos arranjar. E o senhor José Luís, penso para mim, deve explicar lá aos senhores na sede da Liga em Portugal o que é que o senhor Calisto faz no outro lado do mundo que nunca fez à beira Douro. E o senhor José Luís vai ter que aguentar o terror até lhe chamarem para outra missão, talvez voltar para Lousada, talvez continuar a navegar.

Sei que agora que lidera o país desde o covil selvagem da federação local, chegará o momento em que nos enfrentemos. “Oito anos, Zé, vi coisas nestes campos complicadas, difíceis, impossíveis de descrever. Oito anos. O horror, Zé, ou adoptas o horror, Zé, e a moral. Ou adoptas o horror e a moral, Zé, ou serão para sempre os teus grandes inimigos”. Oiço a voz dele dentro do quarto com a certeza que passarei por algo que já vivi. “Tudo o que fiz e que me trouxe aqui, finalmente prestes a algo, fi-lo contra a mentira, quando percebi que só conseguiria os títulos com estes homens que nunca me julgariam. Jogávamos e jogávamos, desde a disciplina e a entrega absoluta. Tivesse tido cinco, três, um homem destes que fosse em Paços ou na Académica, e verias o nunca visto. Agora és tu. Podes destruir o meu legado, matar a lenda, superar-me e humilhar-me, mas não me podes julgar”. Não o oiço agora mas sei o que ele dirá. Enquanto espero enfraqueço. Enquanto espero ele fortalece-os, na emboscada.