segunda-feira, junho 29, 2009

Surpresa nos convocados: ainda não é desta que passamos à dissertação quimbertiana.

Há não muito tempo, sussurrava-se entre os cacifos do balneário cadernético que realmente a bola portuguesa não pára de nos demonstrar que todas as ocorrências, por mais insignificantes que pareçam, estão relacionadas de forma decisiva para congeminar a essência desta nossa fascinante realidade. O tal efeito mariposa, que em futebolês se formularia no teorema “quando um profissional guineense bate as asas na cara dum apanha bolas na Choupana, um ex-treinador do Casa Pia ganha o campeonato da Costa Rica”, revela-se uma vez mais e com arrepiante actualidade.

Na mesma semana em que resolvíamos abordar, ainda que superficialmente, o africanismo futebolístico, eis que salta para a ribalta justamente o mentor espiritual de uma das experiências melhor conseguidas nesse quadrante etnico-futebolístico. Falamos da feroz dupla Clint e Lewis que, de blaugrana em Felgueiras, e amparados por Baroti e os Lima Pereira, trouxeram para a montra da redondinha viriata a hipnótica cadência do futebol crioulo e deram ao condado do saco azul as últimas alegrias antes da descida de divisão do ano seguinte. O artífice desse “apogeu e queda” é o tal estratega hoje em dia tão em voga: Jorge Jesus, flamante empresário multifacetado, o Rinus Michel da Medideira que fez a baía seixalense parecer os diques que protegiam estoicamente o De Meer de Amsterdão, tal era a torrência do seu total voetbal nesses longínquos começos da década de 90, no começo da sua carreira. Honra lhe seja feita, não só trouxe à Atalaia a festa do centro-avante recorrendo a homens que anos antes se degladiavam pelo melhor lugar no banco de Alvalade, Rui Maside e Ali Hassan, como moldou o trinco Sessay e o infatigável lateral destro Tó Sá. Dois jogadores que viriam a elevar outra mística verde e branca, a de um Setúbal a ferro, fogo e mialgia, histórica geração de futebol extremo ainda hoje recordada pelos últimos pescadores de salmonete à linha como uma lenda somente com paralelo noutras latitudes futebolísticas (tema de elevada profundidade técnico-táctica a esmiuçar atempadamente). Adiante.

Esta emergência de Jesus que agora povoa o meio-campo dos jornais desportivos e que nos relaciona com o candomblé futebolístico praticado pelos tobaguenhos em Felgueiras, não é porém a primeira referência a Jesus no já vasto palmarés da Caderneta da Bola. Não querendo entrar nas lateralizações sumamente cristãs ao colectivo dos Atletas de Cristo feitas ao longo deste lustro e meio, outro colectivo entrou pela mão de outro Jesus aqui na nossa publicação corria o longínquo ano da graça de 2003. Concretamente, no dia 15 de Outubro, o senhor entrou nas nossas orações enquanto dissertávamos sobre o mítico Desportivo de Chaves. Como já terão percebido os mais perspicazes, trata-se de Jesus, sim, mas de um outro, um que espalhou a mensagem na ala direita por essa Europa fora e que não é da Galileia mas sim de Aragão: o cigano Jesus Seba, insígnia indomável de outro povo renegado que soube espalhar a mensagem do cruzamento contra toda a espécie de filisteu esquerdino.

Nascido 14 dias antes da revolução dos cravos, compensava o 1,68 metro com uma explosão e pantomina verdadeiramente flamencas. Ironicamente, o seu futebol soube criar as raízes que os preceitos étnicos sempre renegaram, e acabou por demonstrar qualidade suficiente para ser internacional esperança pelo país vizinho, enquanto maravilhava a sua Zaragoza natal. Com uma lesão gravíssima pelo meio, a sua problemática maioridade futebolística forçou-a a uma tão inusual como exitosa diáspora, naquela que era das primeiras incursões de futebol latino na Velha Albion. Aconteceu um daqueles fenómenos extraordinariamente raros que diferenciam o futebol de outras artes circenses: chegado com dois comparsas de diáspora a Wigan, essa terra incerta disputada pelos condados de Manchester e Lancashire, perigosamente próxima da letárgica Bolton, espalhou-se pela cidade a chegada do Messias e os Lactics vibraram com uma reinado de culto, de futebol fluído como sangria e sacramental como a guitarra de Paco de Lucía.

Juntamente com Isidro “Izzy” Díaz, que mais tarde também passaria pelo Barcelona do Marão, e com Robert “Bob” Martínez, carismático centro-campista eleito em 2005 como o melhor jogador de sempre da história do clube e hoje promovido a maneiger dos Lactics , formou um lendário tandem conhecido por Los Three Amigos, praticando um culto futebolístico que levou a equipa da quase descida à Conference division a um apostólico apuramento para a Second Division em apenas três anos. Um glória que Jesus não chegou a atingir: impelido por uma crónica dificuldade em dominar o idioma de Harry Redknapp nas profundezas da Albion e por uma tendência ao nomadismo quase genética, o torpedo caló voltou a Zaragoza e o mantra “Jesus is a Wiganer” não mais se voltou a ouvir em Springfield Park. Um ano depois, rumou ao Belenenses de Marinho Peres, e o resto é história, grande parte dela transmontana numa saga já aqui destrinçada. A verdade é que este sobredotado do cruzamento em arco elevou, como saltimbanco errante pelos relvados sem fronteiras, o trato do esférico a um estatuto de arte efémera e acrescentou o seu nome à não muito vasta lista de sacerdotes da mitologia futebolística europeia.

Hoje, o cigano Seba afundou por fim raízes na terra e escolheu-o bem perto de casa, numa aldeia que leva o nome do lugar mítico do povo mercador, esse lugar irreal que existe de e para o nomadismo da compra. Jesus tem hoje o seu templo em Andorra – não a autêntica, checkpoint comercial encravado nos pirinéus, mas uma de imitação, muito mais barata e em território espanhol. Perante três mil espectadores, volta a fazer do campo o seu tablado e quando se apagam as luzes aqui no balneário da Caderneta, é o som da sua boleria que recordamos.

quinta-feira, junho 18, 2009

Improvável, dizíamos, porque o destino não costuma reservar a filhos de emigrantes lusitanos na África do Sul oportunidades como a de assistir no banco a duas finais perdidas da Liga dos Campeões levando ao peito a insígnia de ganhador do escudete transalpino. Fulgurante porque escasos dois anos depois do idílio vimaranense, encontrou no Piemonte um N’Dinga chamado Deschamps, um Zahovic chamado Zidane e um Agostinho chamado Del Piero, sendo que este último jamais igualaria ao longo da sua carreira os feitos perpretados pelo rabino esquerdino pacence no Mundial de sub20 em terras qatarís – momento insígnia do apogeu daniano da bola lusitana. Terá sido este, porventura, o único ponto em que Dimas terá saído a perder com a sua pessoal evoluzzione e ainda hoje resistem alguns partisanos no peão do Delle Alpi que murmuram que a história das duas Champions perdidas - e consequente “princípio do fim” do projecto de Lippi – teria sido bem diferente com Agostinho a servir Alen Boksic (mais tarde baptizado Offsick aquando do seu retiro no Tyne) ou Bobo Vieri, o Chicabala bolonhês.

Posto que Agostinho preferiu o Real Madrid B, salvou-se a carreira de Del Piero, e Dimas não resistiria a mais de dois anos de aprendizagem com Gianluca Pessotto. Seguir-se-ia o Fenerbahçe, numa etapa curta mas plena de simbolismo. Literalmente baptizado como o “jardim do farol” em turco, a agremiação de Ataturk servira já de porto de abrigo a velhas glórias do futebol português. Já antes tinha envergado a camisola amarela o incombustível Stanimir Stoilov e cabia agora a Dimas a espinhosa missão de fazer esquecer Kostadinov como embaixador do futebol português no clube, no ano em que o búlgaro voltava à sua Sofia natal. Causando surpresa inusitado alvoroço na clandestinidade das apostas desportivas turcas, Dimas embalou para uma excelente temporada: com um perpétuo sorriso e a sua tão característica falta de qualidades assinaláveis, jogou mais de 20 jogos e assinou mesmo 4 golos. A nivel colectivo, evidentemente, a frustrante falta de eficácia era mais consonante com a real qualidade do futebol deste bafana bafana adoptado: o clube do farol nada podia fazer para contrariar a supremacia do intratável Galatasaray, liderado à epoca pelo Maradona dos Cárpatos e o mais notável semi-deus futebolístico dessa semi-nação semi-europeia, o grandíssimo Touro do Bósforo Hakan Sukur.

O posterior interregno noutra semi-nação, a belga Liège, serviria sobretudo para travar conhecimento com Mbo Mpenza, um púbere falso lento congolês com quem viria mais tarde a ganhar o campeonato português ao serviço dum clube do Lumiar, e um pequeno trotamundos bem conhecido no Douro Litoral chamado Tomislav Ivic. Na Bélgica, pela mão de Ivic, adaptar-se-ia também a uma escola de pensamento futebolística que conheceria a fundo na sua última etapa, à qual mais que futebolística chamaríamos de terapéutica ou (porque não?) termal, a do Marselha, onde reencontraria o mesmíssimo croata. Trata essa escola de pensamento, como provavelmente os mais perspicazes já terão adivinhado, de montar todo um esquema de jogo sobre o conceito do “sangue africano a destroçar os flancos”. Bobby Robson intentou com estrepitoso fracasso implantá-la nas Antas (com os diamantes negros Mandla Zwane e Ettiene N’Tsunda), um ex-chefe de Eduardinho colheu pouquíssimos frutos dessa estratégia sacrificial aplicando-a ao camaronês Douala (pecou por escassês, justamente, de “sangre africana”, dirão alguns) e apenas algumas variações ensaiadas tiveram algum sucesso, sobretudo exibicional, como o caso felgueirense, que seguiu princípios similares com o “sangue caribenho” de Clint e Lewis. No Marselha, os recursos eram imensos, com Olembe, Ibrahim Ba e sobretudo o dramaticamente incompreendido Ibrahima Bakayoko, e com treinadores menos defensivos que Tomi ou o talhante bilbaíno Clemente, talvez a classificação tivesse sido mais risonha do que o tímido 9º lugar. Quem sabe, já que poucas vezes a história do futebol centroeuropeu viu uma conjugação tão favorável entre teoria africanista e recursos humanos ao dispôr do timoneiro.

quarta-feira, junho 03, 2009

(O silêncio, como o cabelo de Dacroce, é de ouro, mas a Caderneta continua a correr atrás do prejuízo. Mais variações tácticas muito brevemente e de momento seguimos com a saga vimaranense...)
O segundo grande aspecto que distingue um Dimas de um Joaquim Alberto Machado - com todo o respeito, evidentemente, pelo legado deste último de várias gerações de cavalgadas pela ala direita e uma notável colecção de livres directos, entre outros atributos – é a origem sociofutebolística de cada um.
Seguindo a senda aristocrática lavrada desde o seu bíblico baptismo, Dimas teve uma educação física e intelectual forjada desde cedo em alguns dos melhores viveiros de futebolistas que o país conheceu. Falamos da assustadora geração de 89 em Coimbra, quando privou com o Sansão da Costa Verde, Fernando Manuel de nome próprio (hoje a soldo dum clube de Parma), na mesma etapa vital em que treinou cada dia com históricos estudantes como Mito ou Toninho Cruz. Na mesma era cósmica em que aprendeu o preceito da grandeza de avançados como Marcelo, ainda hoje uma lenda em Santo Tirso e antigo parceiro de goleadores como Aílton, Jorge Leitão ou como o sinuoso Eldon, destroçado anos antes pela concorrência no ataque no clube do Campo Grande ensaiando à época um renascimento à beira do Mondego.
Feita a passagem à maioridade futebolística, rumou a dois decisivos anos na Reboleira com a fina flôr do futebol português, entre astros da época a personagens pouco menos que fulcrais no que é hoje a actualidade da bola lusa. Acompanhar os primeiros passos do figurante Abel Xavier, então apenas aspirante a actor nesse grande cinema que é a bola, partilhar balneário com a velha glória barreirense Fernando Chalana na sua última temporada assalariada, mitos de Luanda a Marselha como Vata, ou hoje treinadores de craveira de um Álvaro Magalhães ou um Agatão, respeitável timoneiro do histórico Operário do Vale Escuro. Para além de um jovem trinco Bento às mãos de uma promessa dos bancos de suplentes, o professor Jesualdo.
As etapas de crescimento em Coimbra e na Reboleira, exponenciadas de forma perturbadora na sua maturidade em Guimarães, talharam naturalmente Dimas Manuel para uma tão fulgurante quanto improvável ascensão.