Historiografia, narrativas e estatísticas de figuras e episódios lendários da bola, essa arte geométrica. Envia-nos mail para a.caderneta.da.bola@gmail.com .
quinta-feira, julho 31, 2003
Com meia Caderneta ainda em treino condicionado (impedida portanto de alinhar com o onze titular na mui ansiada deslocação a Chaves), avança-se aqui para um singelo naco de prosa em honra de um dos melhores centrocampistas portugueses de todos os tempos. Atenção: não é laracha, é um memorial à carreira de um dos mais virtuosos artistas por quem a relva portuguesa teve o deleite de ser pisada. Trata-se, objectivamente, de um futebolista de craveira internacional e, sem qualquer sombra de dúvidas, de um homem que na Caderneta ocupa um dos lugares cimeiros no ranking das preferências.
Jorge Plácido.
A pouco menos de um ano de completar 40 aniversários, merece as nossas palavras por vários motivos. Primeiro, a qualidade estelar do seu futebol. A fineza no trato, a raça na abordagem, o arquétipo do número 10, uma vez mais (e perdoem-nos a queda para este tipo de atletas) um artista polivalente e multi-instrumentista. Segundo, o palmarés impressionante para um astro tanto capaz de vencer uma Supertaça europeia ao serviço do Futebol Clube do Porto como carregar o Salgueiros às costas na heróica eliminatória da Taça UEFA de 90-91 contra o Cannes. Literalmente um franco-atirador em várias frentes, mas já lá vamos.
Agora os factos: nasce em Luanda, começa a carreira no Barreirense, continua na margem sul ao serviço do Amora e, depois, do Vitória de Setúbal quando, em 86-87, emigra para Chaves (vêem como o GDC está sempre presente?). Em Chaves, alinha provavelmente no melhor plantel de sempre do clube, onde é o maestro por trás dos solistas sangrentos Jorge Silva e Rady, numa cruzada que termina no 5º posto e no acesso à Taça UEFA. Acabado de rotular como uma jogador interessantíssimo e a seguir atentamente, ingressa, fruto da excelente prestação transmontana, no Futebol Clube do Porto, em 87-88. Cremos aqui que esta época dispensa comentários, no que concerne à prestação dos azuis e brancos. Faça-se, isso sim, a vénia a Jorge Bravo Plácido. No início da época seguinte ainda arranja tempo de fazer uma perninha na Supertaça Europeia contra o Ajax, que vence, e segue depois Artur Jorge para o já extinto Matra Racing, esse funesto cabaret da bola parisiense, de existência fugaz mas intensa.
No Matra, Plácido faz dois jogos mas prossegue para época seguinte, podendo orgulhar-se de alinhar num clube que mudou de nome durante a sua estadia. O Matra, na viragem dos 80 para os 90 (miserável efeméride, essa), passa a chamar-se Racing Paris I, mudando também o nosso homem para o "suplente que agora alinha quase a época toda e, apesar de não levar o clube além do 19º lugar da liga francesa, condu-lo bravamente à final da Taça". No final desse ano, regressa à casa das Antas onde o seu futebol é incompreendido e desrespeitado, apesar de contribuir para a vitória na Taça de Portugal. Não contente com isso, mas sofrendo de uma inexpugnável ligação à Invicta, ingressa no Salgueiros onde torna a ser o Hamlet dessa enorme tragédia chamada futebol português. É nesse ano que o Salgueiros, na sua primeira participação na Taça UEFA, consegue vencer o jogo da primeira mão frente ao Cannes numa excelente partida iluminada pelo génio de Plácido, autor do único golo, e quase passa a eliminatória, não fosse um golo de Oman-Biyik (internacional camaronês e mundialista em 90) aos 85 minutos e a malapata na lotaria dos penalties. Registe-se que o feito do Salgueiros foi apenas ofuscado por uma colossal eliminação do Inter de Milão pelo Boavista, com uma eliminatória garantida na primeira mão por um 2-1 de Marlon Brandão e Pedro Barny.
Enfim, Jorge Plácido fica mais uma época no Salgueiros onde continua a brilhar, embora um pouco abaixo da temporada transacta e, em 93, parte de novo rumo à France para jogar no Créteil. No Créteil fica uma época até viajar, encore par l'autoroute, até aos arrabaldes da Cidade Luz. O destino era os Lusitanos de Saint-Maur, à altura uma desconhecida equipa de emigrantes saudosos da bola lusa (com tudo o que isso tem de tenebroso). Entre 94 e 97, altura do primeiro período Saint-Mauriano de Plácido, o clube passa de um grupito de solteiros e casados com sotaque entre o français e o minhoto que joga nos (equivalentes a) distritais a clube irredutível capitaneado pelo craque campeão europeu que já anda ali entre os distritais e (equivalente a) terceira divisão. Segue-se uma curta paragem de uma época no Saint-Denis-Sains-Leû e o regresso, logo de seguida, aos Lusitanos em 1998, onde alinha até ascender ao posto de treinador principal em 2000. Note-se que por esta altura, ou kuíca [ver significado do termo num post de glossário por ora em arquivos cadernéticos] um pouco mais tarde, que os Lusitanos cometeram a proeza de chegar aos quartos de final da Taça Francesa onde defrontaram com brio o Bordéus.
Como cereja no topo do bolo, falta acrescentar que este sacerdote das jogadas sagradas vestiu a camisola das quinas por 3 ocasiões tendo facturado 2 golos com a mesma no corpo.
Reverência, caríssimos, reverência. Não se trata de um qualquer parodiante de alma vendida ao diabo na encruzilhada do defeso, não se trata de um pantomineiro que promete mais do que dá, antes de um Homem cuja quimera era a auto-superação, o atingir do inominável (vide Chaves na Taça UEFA, por exemplo). Sem a tentação da carne ou das liras ou das libras ou das pesetas, o sucesso, isso sim, trazido a quem nunca o tinha conhecido, a partilha honesta da magia com quem até ali vivia no mundo enfadonho e obscurantista da bola sem cor.
Ao leitor ou leitora que acaba de ler este post tomando-o por uma ode a Jorge Plácido, desengane-se: Jorge Plácido é ele, sim, uma ode a si, amante de futebol.
quarta-feira, julho 30, 2003
A Caderneta da Bola investiu no estádio e agora os espectadores passam a contar com um sistema de comentários para uso e desfruto desenfreado. Quem aprecia, ama e, sobretudo, respeita a boa bola sabe que um bom desafio não passa sem o salto na cadeira e o vociferar de espanto, êxtase ou desgosto. Foi a pensar nisso que instalámos o aparelho.
sábado, julho 26, 2003
Caríssimos leitores,
Em altura de extrema azáfama para o duo caderneto, é com algum pesar que anunciamos que ainda não é neste post que começamos a discorrer torrencialmente sobre a bola do Marão. No entanto, e porque temos um compromisso com a história, inauguramos aqui mais uma secção temática, Os Misters Preferem os Loiros.
Como já devem ter calculado, não existe outro homem mais capaz de encabeçar esta secção do que Vlado Bozinovsky, o australiano que um dia chegou a Aveiro para mostrar que os australianos não só sabiam jogar à bola como também manter um couro cabeludo em óptimo estado para a alta competição.
Parece que através das linhas vos conseguimos ler os pensamentos a fervilhar: "de certeza que o nome está bem escrito?". A verdade é que nos faz falta um José Nicolau de Melo, conhecido por questionar os jogadores sobre a pronúncia nativa dos seus nomes (revolucionando a fonética da bola com a transformação de Drulovic em 'Drulóvich' ou Zahovic em 'Zahóvich'), para resolver essa dúvida, pelo que adoptamos Bozinovsky e não Bozinosky, como muitos se recordarão de ter lido na imprensa desportiva.
É também curioso que em Aveiro desemboquem tantos saltimbancos intercontinentais, desde o faraó Magdi Abdelghani até este australiano, ou, mais recentemente, o ídolo senegalês Fary Faye. Este facto ainda carece de explicação.
Falemos então de Vlado Bozinovsky. Nascido em 1964, espalhou o perfume do seu futebol (e do seu amaciador) pelo South Melbourne, onde deu os primeiros passos. Estava visto que a colónia penal anglófona não era suficientemente grande para o quilate deste médio polivalente, com apetência para o ataque e óptimo tiro de meia distância. Vai daí, não é de espantar o seu percurso por terras jugoslavas, onde apurou ainda mais esse jeito vagamente latino de vagabundear pelas alas e envolver-se em tabelinhas vistosas pelo centro, alinhando no Dínamo de Zagreb, clube do país onde nasceu, a Jugoslávia.
É claro que o Dínamo, num país dividido entre as equipas de Belgrado, o colossal e inspirador Estrela Vermelha e o Partizan, não oferecia aos bons jogadores um bom espaço de projecção para o futebol internacional.
No entanto, Vlado não foi lá muito esperto já que o futebol belga, para onde transitou, não era muito melhor. É certo que estamos num tempo, no final da década de 80, em que este vivia ainda à sombra dos feitiços dos alquimistas Vicenzo Scifo e Bruno Versavel, mas o Club Brugge continuava e continua hoje a ser um clube pouco acima da mediania.
Discreto em terra de boa cerveja, uma vez mais se torna complicado compreender a opção Beira-Mar. É por aqui que podemos começar a traçar Bozinovsky como um jogador inconstante, sofrendo a qualidade do seu futebol com essa periclitância, essa incapacidade de criar raízes. Bozinovsky, nascido na Jugoslávia, feito futebolista na Austrália, regressado a uma terra transfigurada, emigrado na Bélgica, refugiado em Aveiro, é assim produto da bola apátrida e trituradora, de um mundo desmembrado e criminoso que ataca os calcanhares dos artistas a golpes de rescisões e truques mediáticos.
Em Aveiro, no entanto, arranca para uma grande época. Faz 32 jogos, pega na equipa, assumindo-se tanto como ministro, no planificar eficiente dos ataques, como operário, a fechar nas alas e a dobrar os companheiros no segundo terço do terreno.
A inconsistência do seu futebol, porém suficiente para um clube como o Beira-Mar, não impede a transferência para o Sporting, em 91, alinhando de verde e branco na época da histórica campanha da UEFA em que o Sporting foi trucidando adversários até claudicar estoicamente frente ao Inter de Milão nas meias-finais. Um plantel onde tinha como companheiros jogadores como o gaúcho Douglas (trinco cerebral mas duríssimo), Oceano, Carlos Xavier e a promessa Filipe (um jogador eternamente jovem, de magnífica visão de jogo, que poucos anos depois viria a abandonar o futebol com uma série terrível de lesões graves), entre outros.
Ainda assim, perante este naipe de centrocampistas, Bozinovsky teve poucas oportunidades para brilhar, fazendo no entanto bons jogos na Taça UEFA. No campeonato, alinhou apenas 11 vezes, pelo que no final dessa mesma época regressou a Aveiro, clube de onde viria a sair um ano mais tarde para ir para o Ipswitch Town, de Bontcho Guentchev. Porém, também em Inglaterra, já no seu quinto país futebolístico, o australiano não viria a ser feliz, jogando muito pouco. É por isso que, em 93-94, regressa a Portugal para jogar no Paços de Ferreira onde, como titular indiscutível ao longo da época, vê o clube dos móveis afundar-se e descer à Segunda de Honra. Aí ficou mais uma época, alinhando no escalão secundário, para no ano seguinte regressar à Primeira Divisão, com a camisola do Felgueiras, carimbando o livro de ouro do clube naquelas três ou quatro épocas em que essa terra viu crescer Sérgio Conceição e os tobaguenhos Clint e Lewis e o brasileiro Ronaldo.
Em Felgueiras também jogou a maior parte da época, não conjugando todavia a assiduidade com a regularidade exibicional.
Depois de Felgueiras, a Turquia, no Ankaraguçu, e depois de um ano na Turquia, duas épocas douradas (no cabelo e na carteira) ao serviço do Tanjong Pagar, clube de Singapura.
Por esta altura, já Vlado se podia orgulhar de ter alinhado em 7 países e 3 continentes diferentes (ou 4, se não metermos os Turcos na Europa). Senhor de um futebol altamente turístico e vistoso, Bozinovsky conquista o coração dos adeptos asiáticos e protagoniza, em 1999, uma sensacional transferência para outro dos grandes de Singapura, o Home United FC.
Depois disso, o ocaso, o eclipse da ribalta da bola. Pode ser que Vlado, hoje com 39 anos, continue a encantar plateias indochinesas como já fazia aos 36 anos. Ou pode finalmente ter posto de lado a mala de cartão e assentado arraiais em África ou na América, continentes ainda por descobrir ao ícone futebolístico da globalização.
A verdade é que, passeatas aparte, também o seu futebol derivada, não tendo passado dos bons pormenores e do estatuto de "bom jogador mas com muito a provar, ainda". Aquela centelha que separa um Alex de um Ricky (numa comparação boavisteira).
A abertura de possibilidades e a fluidez do mercado podem ter, como se vê, tanto de bom como mais ainda de mau, tendo criado em Bozinovsky um fracturante crise de identidade que terão conspuracado irreversivelmente a pureza do seu futebol. Mesmo assim, jogou regularmente, salvo uma ou outra excepção, nos clubes onde foi alinhando, o que só prova que mesmo o futebol impuro ganha, com um cuidado e tratamento diário do escalpe capilar e umas madeixas ou nuances duas ou três vezes por semestre. Afinal, o seu futebol teve momentos esplêndidos e é também por isso que muitos misters continuam a preferir os loiros.
terça-feira, julho 22, 2003
ÚLTIMA HORA:
Após um forcing negocial, a Caderneta da Bola SAD vem por este meio comunicar que chegaram a bom termo as negociações com o astro da bola escrita, falada e comentada Rui Malheiro, o regista do Terceiro Anel ( http://terceiroanel.blogspot.com ).
Quando os craques são pessoas sérias, idóneas e interessadas, não é difícil chegar a acordo e as verbas são relegadas para segundo plano, pelo amor à camisola futebolístico-historiográfica.
Ganham os adeptos, ganham o futebol, ganhamos, enfim, nós todos.
Palpitamos a escolha da camisola 11, em homenagem a Pedro Miguel, e os golos surgirão no final de Agosto, depois de umas merecidas férias, juntando-se nessa altura ao restante plantel.
É claro - e esta informação não pode também passar ao lado de quem lê - que toda a grande transferência (com franqueza, perante isto, custa-nos a compreender o frisson em torno de Ricardo...) envolve contrapartidas, neste caso bastante interessantes. Haverá mais novidades do defeso nos próximos dias, pois o momento, nos plantéis coesos, é de planificação serena da época que aí vem.
sábado, julho 19, 2003
Temos recebido uma quantidade assinalável de correio de leitores. Agradecemos os elogios e registamos as referências. Recordamos o surgimento do Futeblog Total ( http://futeblog-total.blogspot.com ) e do Adepto de Bancada ( http://adepto-de-bancada.blogspot.com ) e agradecemos todas as sugestões, que serão sujeitas a rastreio consoante as prioridades editoriais.
O Vitória de Guimarães é um manancial interessante mas, frisamos, as próximas aventuras serão José Eduardo, o comentador, e o Desportivo de Chaves. Na próxima semana, metade da Caderneta estará a vistoriar as obras dos estádios do Euro e a outra metade não estará a vistoriar as obras dos estádios do Euro, pelo que será complicado produzir ao ritmo alucinante a que os leitores se têm habituado. Será, no entanto, um quase-silêncio de pouca dura.
ÚLTIMA HORA: A Caderneta da Bola, neste altura de defeso, é um clube sempre atento ao mercado de transferências e a quem todos os bons jogadores interessam. Por isso, e perante insistentes rumores surgidos nos mentideros da bola escrita, vem por este meio assumir publicamente o seu interesse na contratação do mais promissor falador de futebol a actuar, neste momento, em Portugal.
Trata-se, como já adivinharam, de Rui Malheiro, um jovem com cartel e provas dadas no futebol português e com quem a Caderneta gostaria de contar para uma colaboração regular e de cariz estritamente historiográfico, um pouco à semelhança da escola táctica que o próprio já tem vindo a desenvolver na secção 'Recordar é Viver' do incontornável Terceiro Anel.
Dizemo-lo publicamente e antes de contactos com o empresário porque não tememos a concorrência: temos camisolas feitas, só falta escolheres o número, e um contrato de 3 épocas à espera. Qualquer oferta superior, nós cobrimos. Seguimos para estágio brevemente e o campeonato está à porta. Que nos dizes?
Quanto aos ajudantes da armada, temos em Beto, Carlos Alberto Santana de seu nome, um contra-almirante de respeito.
Com uma compleição física que o capacita tanto para a bola, como para a estiva como para a porta de uma discoteca na 24 de Julho, pulverizou a concorrência ao marcar 16 golos na época de 92-93, o glorioso ano da subida. Carioca, era um avançado fortíssimo, que corria e rompia defesas dentro e fazendo sobejo uso do seu remate fácil e poderoso. Proveniente do América do Rio de Janeiro, esteve 5 anos no União, ao longo dos quais marcou 39 golos. Depois do União, seguiu-se uma experiência em Espinho, na esteira de pontas-de-lança memoráveis como Bolinhas (a quem tiver a arte, que lhe dê voz, ou nós próprios o faremos em tempo certo) ou Artur Jorge Vicente.
Já Manú é outra conversa. Também brasileiro mas de Brasília, este dianteiro fazia da classe e do jogo de anca o seu ponto forte, impecavelmente penteado e senhor de um futebol melodioso, espraiou o tropicalismo ao longo de 4 temporadas e 24 golos, tendo seguido depois para o Chaves (está para breve, a resenha), Espinho (de novo o Espinho, hoje e sempre), Académica de Viseu e Imortal de Albufeira. De notar que se trata de um jogador temperamental e com personalidade, pelo que o respeito que ganhou, granjeou-o muitas vezes à custa de um ou outro vermelho e uns quantos amarelos. Bem sabemos que hoje em dia pouca diferença faz, mas falamos aqui de um tempo e de um lugar onde a ética e o savoir-faire ainda vinham no dicionário. Ou não fosse um pastor o capitão.
Existe, no futebol, uma série de verdade tidas como absolutas, isto é, consensuais desde os relvados até às cabines dos relatores, desde os jornais aos Donos da Bola. Falamos de afirmações como "Geraldão marcava muita bem livres directos" ou "o Porfírio, se tivesse cabeça, podia ter sido um grande jogador". Lugares comuns, enfim.
Um desses, aliás de dimensão internacional, é o incontroverso postulado "os jugoslavos são os brasileiros da Europa". Para se compreender melhor o União da Madeira, o clube cuja missão é precisamente provar cientificamente esta tese, temos de a ter em conta aprofundadamente.
A urdidura estratégica absolutamente prodigiosa dos gialloblui do Funchal pode resumir-se num raciocínio silogístico de razoável complexidade: brasil = bom futebol; jugoslavos = brasileiros da europa = bom futebol; brasilileiros + jugoslavos = bom futebol; (comprar) brasileiros + (comprar) jugoslavos = (comprar) bom futebol. Se tomarmos 'comprar' como prerrogativa da acção 'jogar', temos o resultado final: (comprar) brasileiros + (comprar) jugoslavos = (jogar) bom futebol. Tem tudo para dar certo. Aparentemente.
Sem grandes delongas neste preâmbulo teórico, porque não é este o objectivo do post, podem apontar-se, assim de repente, duas falácias nos planos dos patos bravos da bola madeirense: a falácia da 'falsa totalidade' (o futebol é idiossincrático, nem todos os brasileiros e jugoslavos são bons) e a do 'entrosamento' (os bons jogadores, para obterem sucesso individual e colectivo, têm de estar entrosados entre si [voltaremos a este termo]).
Estas podem ser duas causas possíveis para, apesar de um ou outro apontamento, a canarinha do Governo Regional SAD nunca ter acabado um campeonato acima do 8º lugar.
Há, no entanto, um acervo considerável de "gestos técnicos" que acabam por sustentar, ainda que debil e discutivelmente, a invocação da tal teoria dos brasileiros e jugolsavos. E esse acervo devemo-lo, na Madeira unionista, quase por inteiro à armada ofensiva balcânica e a dois franco-atiradores sambistas.
Já aqui falámos do trio maravilha e dos dois comparsas tropicais, pelo que há que mergulhar de cabeça nas águas tépidas dos golos insulares:
Jovo. Nascido Jovo Bosansic, em Novisad, na antiga Jugoslávia. O mais novo do trio. Não sendo demasiado alto (1,79m), era senhor de um físico equilibrado, um porte elegante. Homem de poucas palavras e olhos de um doce azul oceânico, chegou à Madeira na temporada de 92-93, proveniente do Vojvodina, para alinhar na maior parte dos jogos e facturar 9 golos e assinando o livro dourado da subida de divisão. Nas duas épocas seguintes não alinhou tantas vezes, tendo marcado apenas 1 golo em 94-95, ano em que o União desafiou a comunidade de estudiosos ao falhar a manutenção com uma equipa em que apenas tinha 3 portugueses e tudo o mais era brasileiros e jugoslavos, as tais garantias de bom futebol. No que concerne a Jovo, podemos dizer que a candura não o ajudou, em Portugal, mas que a elegância atraíu terras de Sua Majestade.
Em 95-96 ainda começou a época no União mas transferiu-se de seguida para o Barsnley, onde fez duas temporadas a jogar regularmente nos escalões inferiores. Depois disso, seguiu-se o futebol francês e o Guingamp, também da 2ª divisão francesa. De regresso ao União em 99, foi no Nacional que prosseguiu a carreira, depois disso.
Agora, Lepi. O avançado Lepi, petit-nom para Dragoslav Lepinjica,é o mais velho dos três. Poderoso, sorridente e bem penteado, era temível na grande área e fez escola no futebol jugoslavo, onde se formou, no Osijek e de onde saíu para jogar no Dínamo de Zagreb, ainda nos anos 80. Chegado à Madeira em 1990, é um dos históricos do clube, onde alinhou seis épocas seguidas e facturou, ao longo desse tempo, 25 golos, tendo participado em duas descidas de divisão e nunca jogando menos de 14 jogos por época. Na segunda descida, não resistiu e viajou uns quilómetros para o Machico, à altura, em 96, na segunda divisão B. Porém, foi e será sempre uma referência do ataque madeirense.
Simic, Sasa Simic. Belo jogador. Explosivo no drible, atómico no pique, ágil no um-para-um. Dava gosto vê-lo escapulir-se aos adversários. Descoberto no Banja Luka, chegou à Madeira para imprimir velocidade no ataque, em 94-95, ano em que, malogradamente, os seus seis golos não foram suficientes para evitar a descida de divisão. A vingança do sniper não se fez porém esperar e no ano seguinte, ao longo de 28 jogos, marcou 12 golos, o que lhe valeram uma transferência para o Bessa, onde era visto como aquele que faria esquecer o brasileiro Artur, a quem muitos chamaram Rei daquela távola redonda onde também cavalgavam Timofte, Sanchez e Nuno Gomes.
No Boavista fez duas épocas, não foi muito feliz (alinhou 18 jogos na primeira e apenas 11 na segunda) e o Beira-Mar foi o destino seguinte, onde alinhou quase a época toda e apontou 8 golos. Depois disso, o coração deste bólide falou mais alto e abdicou da Veneza portuguesa para regressar ao seu União, na altura, em 99, na segunda B. E aí, já em declínio, ficou, passeando a sombra daquilo que já foi, e as saudades dos antigos companheiros de bombardeio.
segunda-feira, julho 14, 2003
E ao 10º dia, a Caderneta renasce, qual Cesár Brito na Covilhã.
Uma complicada lesão académica nos ligamentos internos cruzados impediu-nos de alimentar este monstro a papas de história e arroz de bola, nos últimos dias. Mas após o calvário, os leitores poderão contar com uma imparável torrente de posts e mais posts sobre os vários assuntos que a Caderneta foi deixando pendente.
Apenas para abrir o apetite, viramos mais uma página do Dicionário Português-Futebolês e prosseguimos para a letra G:
G para "Gesto Técnico":
Expressão cunhada ao longo dos tempos no dialecto, é hoje uma das mais importantes e utilizadas muletas de comentador televisivo e radiofónico. A expressão é volante, volátil e polivalente, pois refere-se a qualquer gesto de um jogador de futebol em pleno desafio que agrade ou exclusivamente ao comentador ou ao público presente no estádio em geral. Por exemplo, quando um ponta esquerda a abrir um espaço para a entrada de um segundo médio ala numa diagonal, o seu papel pode ficar obscurecido pelo sucesso do ponta-de-lança que conclui. No entanto, o bom profissional de imprensa não deixará de salientar o "belíssimo gesto técnico" do ponta. Esta expressão tem vários equivalentes, mas raros são os que atingem o seu quilate lexical. Falamos, claro, de expressões como "execução" ou "trabalho" ou ainda "apontamento".
Indispensável a esta expressão é também o seu adjacente qualificativo. Raros são aqueles que falam do gesto técnico sem lhe acrescentar "perfeito" e "belíssimo", ou, caso não tenha resultado, "imperfeito" ou "de fraca execução". Note-se que o acervo de qualificativos depende da escola teórica do comentador. Se estivermos a lidar com um Ribeiro Cristóvão, não é de espantar ouvir "gesto técnico de grande categoria", ao passo que um Gabriel Alves já apostará no rigor proto-científico de um "excelente gesto técnico" ou até mesmo "gesto técnico irrepreensível, a revelar excelente capacidade de leitura técnico-táctica", em momentos de maior inspiração. Jorge Perestrelo, por seu turno, já acrescentará duas ou três palavras em crioulo e um abraço para o seu grande amigo que almoça, à hora do jogo, na Mealhada.
Outra grande questão em torno do "gesto técnico" prende-se com a validade da expressão: em rigor, qual é o gesto que não contém uma técnica? Ou, por outras palavras, a técnica não se verifica ontologicamente através dos gestos? Parece-nos que a utilização do termo visa elogiar determinado lance de um determinado jogador. No entanto, basta de redundâncias! Digamos sim à higiene discursiva, no que à bola diz respeito! Se todo o gesto inclui uma técnica, todo o gesto é técnico, mesmo que a especialização na técnica não se verifique, ou mesmo que a técnica não seja aplicada conscientemente.
Há no entanto outra explicação avançada para a utilização tao corrente desta expressão. A explicação de que em Portugal, nem todo o gesto futebolístico chega a conter técnica, tal é a pobreza de muito do futebol aqui jogado. Atenção: a quem se esconde à sombra cobarde deste tipo de teses, respondemos com elevação teórica - mesmo o futebol, quando não é bem jogado, implica técnica. os falsos profetas que não reconhecem isso apoiam-se num paradigma caduco e há muito abandonado na ciência da bola, o paradigma de que há a "técnica" e a "força", quando na realidade (já o dissemos!) tanto uma como outra são componentes da mesma acção.
A esses, e por respeito tanto à língua como aos leitores como ao verdadeiro amante do desporto rei, dizemos de uma vez por todas: dicotomias, só a "técnico-táctica", e o resto são centros para a bancada.
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